Costuma desvalorizar o apelido que tem, possivelmente por ser demasiado fácil, por resultar num efeito de lapela para uma personalidade discreta por vocação e feitio. Mas é a paixão que melhor o define. Um entusiasmo e uma entrega doces, atentos, persistentes. Sim, Sérgio Paixão tem uma virtude pouco distribuída: é capaz de fazer durar o sentimento apaixonado, que os manuais, as revistas do coração (e a vidinha também) dizem fugaz.
A sua história já leva muito que contar até ao momento em que se fixou na Horta e passou a assumir a missão de traduzir Brel para português e divulgar tudo o que se vai passando com o artista em toda a parte. Até o instante em que conciliou a sua vida profissional com a vontade de fazer coisas como um grupo de cantares Maré Viva ou o grupo de teatro chamado Carrosel. Até tantas outras aventuras.
Nascido em 1948, na cidade de Lisboa dos anos pós-guerra, este filho de operários viveu os anos 50 em Belém, junto àquele rio para onde o levava o pai nos dias de pescaria – recorda-se das brincadeiras atrás da Central Eléctrica (hoje Museu da Electricidade). “As pescarias não eram grandes mas aquele rio a passar e a margem do outro lado nunca mais me deixaram”, diz. Outras eram as visitas no Verão à praia da Trafaria ou à praia de Algés. Passados os anos de escola primária, a trezentos metros de casa, Sérgio foi em 1959/60 para a modelar escola Francisco Arruda, no Alto Santo Amaro, dirigida pelo professor Calvet Magalhães, que punha a criançada sentada no chão a ver cinema aos sábados de manhã. “Para nós, miúdos da classe operária, era um luxo”. As tardes, passava-as nas obrigações da Mocidade portuguesa, com farda a preceito (e a contragosto) e preparação militar. Apanhava sempre o eléctrico que a Carris punha ao serviço dos operários com preços mais baratos – o “carro operário”.
Passou os anos 60 como qualquer adolescente da época, tendo como hábito ir ao cinema Promotora, no Largo do Calvário, assistir aos filmes de Cliff and the Shadows e tocar viola para fazer as suas covers de alguns hits da época. No final dessa década teve início a sua história com Jacques Brel: “Comecei a ouvir um tipo (pensava ser francês) que me tocou de uma maneira diferente. Pela maneira como cantava e pelo que cantava. Nunca mais lhe perdi o rasto”. Nunca mais lhe perdeu o rasto, sim, durante um percurso em que, entre outras coisas, foi pintor de rua, andou pela Holanda e, instante decisivo, conheceu uma mulher faialense que o levou aos Açores. Brel, esse, transportou-o na bagagem, e surpreendido ficou por saber que o artista havia passado pela ilha que agora habitava. “A partir daí (princípio dos 80) comecei a investigar tudo sobre ele, a comprar discos e livros e a traduzir as canções”. Depois é o que sabem os mais atentos. Fez um programa para a rádio e a televisão sobre o grand Jacques. Traduziu no seu blogue, Canto do Brel, as suas letras para português e todos os dias tem uma novidade para postar sobre o artista – uma notícia, um espectáculo, um filme, um recital.
Sérgio fala de Jacques Brel melhor do que ninguém. Por isso o melhor é calarmo-nos para escutar as suas palavras: “As primeira músicas que me ‘agarraram’ foram ‘Les Bourgeois’, ‘Au Suivant’, ‘Les bonbons’. e o enorme ‘JEF’! Mas não é fácil dizer qual é a preferida. Porque há canções que me comovem como ‘Ne Me Quittes Pas’ ou ‘Ces gens lá’, canções me fazem chorar como ‘Les Vieux’ ou ‘Mon Père Disait’, canções que me divertem sempre como ‘Le Caporal Casse Pompon’, ‘Les Bigottes’ ou ‘Les Timides’. Mas todas elas me deixam uma emoção incontida atravessada na garganta, uma vontade estranha de pôr mais alguém a ouvir ‘aquilo’ que é bom demais para se perder”. Pausa. Para o remate: “Brel é tão diferente dos outros cantores que conheço: é um ser único (como artista) porque sem ele, as letras e as melodias seriam boas na mesma. Mas só ele consegue juntar as duas coisas. E fá-lo com a voz, com o coração, com os olhos, com os braços, com as mãos, com o corpo todo. Por aí é que tenho feito a ‘minha campanha’ para divulgar o seu nome. Na rádio, na televisão e agora na net”. Nós só temos que agradecer.
Os pneus rodam pelo calçadão e a música nos auscultadores transforma o passeio num videoclip. Tudo isto podia ser um lugar-comum musicado, um anúncio dos Jogos Olímpicos, com meninas correndo, pedalando e patinando junto ao mar, uma melodia de beleza em movimento e os efeitos especiais da poeira da maresia, dos morros como pano de fundo, da humidade escorrendo das árvores. Começou a primavera a sul do trópico do umbigo do planeta, há gente no areal a meio da manhã, uma água de coco custa quatro reais (‘tá cara pra cacete esta cidade), os painéis publicitários anunciam 24 graus, esta galera anda bem-disposta, de peito feito, salários altos (inflação também) em contra ciclo anímico com a Europa. E isso acentua a sensação de videoclip, uma vez que acabei de chegar ao Rio de Janeiro depois de cruzar, nos últimos anos, a espessura e o ruído da crise portuguesa nos telejornais e nas manifestações e nas conversas de pastelaria. Um dia estou numa cidade que amo – Lisboa –, inquieto como os meus compatriotas, e no dia seguinte estou numa cidade que desejo – Rio – a pedalar numa bicicleta emprestada, MPB sintonizada nos headphones, aproveitando a incredulidade do momento.
Voltar a andar de bicicleta todos os dias, como nas tardes das férias grandes, longas de luz e de eventos heróicos, permitiu-me viver num lugar afastado da crise, recuperando uma liberdade apenas conseguida durantes aqueles três meses de verão, sem escola ou TPC, quando uma bicicleta nos bastava para ir a todo o lado. Nessas aventuras em duas rodas só interessava o entusiasmo das descidas arriscadas, a exploração de novos caminhos, o pneu traseiro derrapando sobre a terra. É assim que me sinto nestes primeiros dias no Rio de Janeiro.
Não esqueço o lugar de onde venho – aliás, sempre que alguém não compreende o que digo e questiona “oi?”, recordo-me que sou português de fonética fodida e vogais fechadas. Não esqueço o que se passa em Portugal. Mas não ser contaminado pela electricidade mediática, não debater o Alberto João Jardim num jantar ou comentar o estilo oratório do ministro das Finanças, é tão bom como andar de bicicleta num videoclip.
Saio da praia e entro nas ruas, aproveitando a largura dos passeios para fazer trajectórias de videojogo ao ritmo da música, desviando-me das pessoas, ignorando semáforos vermelhos, escolhendo uma corcunda da calçada para executar um pequeno salto. Por vezes tenho onde ir, outras vezes avanço nas ruas da cidade, vou mais longe, perco-me na Lagoa, vejo clubes de remo e os prédios da fartura carioca, festas em coberturas e crianças com babás trajadas de branco; atravesso a nuvem de maconha criada pelos fumetas precoces do Posto 9, vou por aí até que seja hora de incendiar a tocha da paz na pedra do Arpoador enquanto o sol desce atrás do morro.
Porque acabo de chegar, ainda não tenho as coisas pegadas a mim, parece que deslizo por tudo com olhos de investigador dos bichos humanos. Daí a sensação de videoclip, mesmo quando vejo pedintes sem pernas ou me contam que os mendigos são afastados da rua com choques eléctricos ou quando o porteiro insiste em abrir-me a porta da garagem, se saio de bicicleta, ainda que lhe tenha dito que não era preciso abandonar a sua secretária, que posso muito bem fazer aquilo sozinho – há aqui um servilismo constante, a clara divisão das classes, a herança da corte portuguesa e da escravatura. Uns servem, outros são servidos. (Muitas vezes chamam-me doutor. Prefiro quando a garçonete da cafetaria Rio-Lisboa diz: “Bom dia, meu anjo? Que vai ser, meu amor?”)
Porque ando de bicicleta todos os dias, porque é o meu principal meio de transporte no Rio, passo por tudo com olhos curiosos, confiando que a velocidade a que viajo me permite ir conhecendo esta cidade. Tudo é ainda cartão postal e alegria de estreante e imagens melhoradas pelo Photoshop das noites de cachaça e chopp. Chegará o dia em que, espero, escreverei sobre o Rio de Janeiro com a mesma segurança e empenho com que escrevi sobre Lisboa. Que falarei da Praça Tiradentes com tanto conhecimento de causa como quando falo do Rossio. Por enquanto, limito-te a viver e a escrever como se montado numa bicicleta, protagonista de um videoclip. Sei que o céu aqui é diferente, que passarei a usar a palavra “malemolência”, que a cerveja está sempre gelada, que há muitos portugueses no Rio, que uso mais o gerúndio, que há muitas mulheres com capacidade para alterar a temperatura de uma sala de espera, que fui recebido com atenção, ternura e uma bicicleta emprestada. Tudo isto é um videoclip com final feliz porque sofro de jet lag existencial e porque, de facto, estou feliz. Haverá dias em que me zangue com o Rio, haverá dias em que voltarei a escrever com fúria ou saudades sobre Portugal. Haverá dias em que ouvirei discos de Amália e em que não me apeteça pegar na bicicleta. Mas isso, pelo menos por agora, não me interessa nada – tal como não me interessa o Alberto João Jardim ou o reality show da TVI. Porque a maior evidência, desde que aqui cheguei, apareceu-me (como é óbvio) através da música e enquanto pedalava: “É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe.”
Hugo Gonçalves
(publicado por NMG)
A nossa crónica Sinusite fez mais uma vítima, e nós só podemos agradecer: trata-se do Hugo Gonçalves, cronista extraordinaire em várias publicações e com livrinho editado: Fado, Samba e Beijos Com Língua (correi a comprar).
O Hugo encontra-se a viver no Rio de Janeiro e é de lá que irá escrever os seus textos, que irão ser publicados já a partir de amanhã, 28.
Bem vindo Hugo e obrigado!
Os Sinusíticos
Há dias que têm nome. Nomes bonitos e feios, presos a memórias ou que se estendem no presente. Para mim este dia em que vos escrevo, 27 de Setembro, será sempre um deles, terá sempre um nome, como outros terão. O dia de hoje chama-se evidentemente Leonor porque foi o dia em que a minha filha mais velha nasceu.
A paternidade é uma coisa dificil de explicar e ainda bem. Senão de que me teriam valido os excessivos miligramas de Lexotan consumidos naquelas escadas frias do Hospital de Santa Maria há catorze anos? Ou o suor, a ansiedade, a extrema alegria para a qual nunca irei estar preparado? O mesmo ou parecido iria acontecer duas vezes mais na minha vida, com mais duas criaturas a nascerem perante mim. Consegui-lo explicar de forma lógica e serena seria destruir um mistério que precisa existir e que só a sua vivência o explica.
Lembro-me vagamente desse dia que me introduziu a uma forma inexplicável de amor, que só achava possível em filmes ou literatura, apesar dos conselhos e experiências dos amigos e familiares. Lembro-me do Sérgio Coimbra me ter pedido um texto para O Independente a contar a minha aventura e ter ficado horas a olhar a página em branco, meio sorriso meio estupido. Lembro-me que o texto acabava comigo a segurar uma recém-nascida e a dizer que era tão bonita como a Claudia Schiffer.«Em roxo, mas a Claudia Schiffer», citando-me.
Este dia em que vos escrevo tem nome e olhar e presente e futuro. Este dia com nome serve-me para lembrar que todos os anos, por esta altura, também sou eu que nasço outra vez.
Quando um tipo se senta a escrever sobre qualquer coisa, deve começar por escolher um assunto novo. Como assuntos novos são coisa que aparece tanto como neve em Copacabana, deve ter, pelo menos, o cuidado de abordar o assunto velho com uma perspectiva original.
Ora, queria escrever sobre graffiti e a perspectiva nova seria dizer que aquilo é uma maravilha, mas a coluna vertebral de jovem trintão já não me permite tanto contorcionismo. E, dito isto, peço misericórdia por escrever sobre um assunto velho por uma perspectiva velha, mas, ei, os graffiters também não têm inventado muito.
Sim, bem sei que me dirão que os graffiti são uma coisa, os tags outra e que deve haver mais umas quantas variações entre um extremo e outro. Simplifiquemos. São coisas rabiscadas em paredes. Haverá as bonitas e as feias; os artistas e os parvos. Naturalmente, aqui falamos dos parvos. Como há gente que não devia conduzir, gente que não devia ser chefe nem de si mesma, gente que não devia vestir mini-saia, gente que só devia abrir a boca para dizer o estritamente necessário à sua sobrevivência, há gente que nunca se deveria aproximar de uma parede (excepto, talvez, com a cabeça).
O rabisco na parede, espécie de assinatura ilegível, não tem qualquer aspiração artística; é assumidamente uma mijadela que marca território. Eu estive aqui, dizem eles. Eu estive aqui e vejam o que faço às vossas casas bonitas, às vossas obras de arquitectura, à vossa cidade, ao dinheiro e ao esforço que acabaram de despender a pintar a casa. Haverá, digam-me, acto mais cretino, mais imberbe, mais infantil, mais sintomático de um profundo atraso mental, mais – de resto – exemplificativo do tempo relativista que vivemos em que nada tem valor a não ser a afirmação de si mesmo, como se o simples facto de existir merecesse um prémio e não fosse tão digno de aplauso como a existência dum caracol, duma lesma, dum fungo, duma erva daninha, duma flatulência?
Como se acaba com isto? Proibindo a venda daqueles sprays e tintas, mas logo arranjariam outras coisas com que escrever, nem que fosse com sebo. Partir-lhes, um a um, os dedinhos de ambas as mãos? Sem dúvida, mas logo as consciências morais da nação bradariam contra o autoritarismo e as outras coisas do costume. Só com a educação de uma sociedade que acabe com os putos mimados, as celebrações pessoais de nulo valor, que nos reconduza à admiração do belo (poderia dizer do bem, mas a coluna também já não me permite ingenuidades dessas), mas isso levará séculos.
Até lá, proponho um mal menor. Um graffiter justiceiro que vá por cima dos outros graffiti e lhes corrija, ao menos, os erros ortográficos.
É o mais tolerante que consigo ser. Quem der erros, só pode gatafunhar em túneis e pilares de viadutos. Para escrever nas paredes da Baixa, só com escolaridade obrigatória.
Coloquemos a situação desta forma terrena: há cada vez mais gente a aproveitar a onda da crise para fazer cortes. Empresas de generoso orçamento ficaram subitamente aflitas porque dá jeito que assim seja. Ah e tal, a crise obriga-nos a fazer cortes. Dá vontade de perguntar: e esses cortes não compreendem o despedimento imediato e compulsivo de Vossa Excelência? Mas um tipo cala-se que é por causa das tosses.
Não era disso que vinha falar aqui ao Sinusite. Vinha para deixar um lembrete: "É preciso fazer". Para mim próprio, claro - porque moralista só o sou com os amigos. É preciso fazer, sim. Que é como quem diz: é preciso não sucumbir ao discurso da crise. É preciso - diz que sim - deixar de olhar tanto para cima, para "os poderes". E agir. Criar coisas. Projectos, ideias, lojas, negócios (existem os que só nestes instantes encontram a sua oportunidade), comunidades, delírios.
Acredito - por mais cliché que o discurso possa parecer - que as alturas de crise são das melhores para fazer. Para arregaçar as mangas e fazer. Nas áreas em que cada um se dá melhor: sejam elas a carpintaria, o sapateado ou a poesia. Dizem que não há guito, que há muita nuvem no céu, que isto ainda vai ser pior mas, como dizia o outro (que é quem como quem diz o Fernando Assis Pacheco), "um homem tem que viver/ E tu vê lá não te fiques". Tem toda a razão o Assis nesse "Cuidar dos Vivos", livro de 1963 e hoje cada vez mais premente. Não, não te fiques. Um homem, escreveu ele, tem que viver com um pé na Primavera. Por isso dá-lhe. Com o melhor de ti. Só assim podes "um dia com uma saudade burra/ dizer adeus a tudo isto".
Já me irritaram muito as pessoas apaixonadas por sítios tão estapafúrdios como S. Martinho do Porto ou Moledo. Lembro-me de ter escrito uma croniqueta a gozar violentamente com os fanáticos frequentadores desses lugares. Ir para um sitio onde está sempre frio, fazer praia num local onde tomar banho de mar é arriscar não poder voltar a procriar, não se enquadrava propriamente no meu conceito de férias de Verão. Depois, aquela história de “a minha família vai para lá há gerações” eriçava o novo-remediado suburbano que há em mim. Apetecia-me sempre dizer: “ora porra, a tua família ia para lá porque a malta ia para a praia de fato e gravata e aquilo era o que se assemelhava mais a uma estância balnear a menos de cinco horas de caminho. Tivessem carrinhos e auto-estradas, e andassem de calções e camisetas e sempre queria ver se não iam para um sítio quentinho? “
Agora já não me enervam tanto Moledos e quejandos. Até lhes acho piada: a sensação de se estar num local perdido no passado, o estar num sítio frio quando a turba se está a torriscar em Vilamoura, o ficar no café à conversa com um tipo que só vemos naqueles dias. As partidas de lerpa à noite em frente a um aquecedor.
Li, já não sei onde, que o cronista relata uma realidade quotidiana, um sentimento, uma sensação através dos seus óculos. Mais embaciados hoje, com lentes escuras amanhã, com uns riscos depois de amanhã. A mesma realidade, o mesmo tema, muda quando nós mudamos. E nós mudamos, oh se mudamos, só que as nossas mudanças vêm para frente e para trás. Hoje execramos Moledo, amanhã até achamos o local interessante. Umas vezes reconhecemos isso, outras vezes não. Só que quando escrevemos as nossas contradições ficam ali sem que as possamos negar. E é por isso que o cronista é um tipo essencialmente honesto. De tanto olhar para as mesmas coisas – e, no fundo, escrevemos sempre sobre meia dúzia de assuntos –, de tanto se contradizer, percebe que as suas convicções são frágeis, que tanto pode ver graciosidade numa aranha, como achar o bicho nojento. Não existem crónicas verdadeiras ou análises à prova de bala. São como nós: imperfeitas e inseguras.
Não sei se ao estimado leitor acontece o mesmo, mas, no meu caso, estão sempre a jurar-me a pés juntos que conhecem alguém que é igualzinho a mim. Cara chapada. Forma de falar e tudo. Os gestos e assim. Uma coisa incrível. Terminando no fatal: vocês têm de se conhecer.
Gosto do vigor com que é dita esta última ideia. Fico a pensar que a pessoa porventura está convencida de que descobriu ali o elo perdido de uma família. Que nos vai pôr a mim e ao amigo igualzinho-cara-chapada e que, posto um segundo de lividez, correremos para os braços um do outro exclamando: “Irmão! Pensei que te tinha perdido para sempre! A tua cestinha foi ter aonde?” Algo assim.
O habitual é a pessoa ficar radiante com a descoberta. E espera, aparentemente, que sintamos o mesmo. Eu não. Não é por ter a mania de que sou especial e único; é porque fico sempre a tremer com a perspectiva de ser apresentado a um neenderthal com óculos, um magrizela hiperactivo, um narigudo petulante, um rato de sacristia efeminado, qualquer coisa que nada corresponda à imagem olímpica que tenho de mim mesmo, mas que, por qualquer motivo obscuro, encaixe magistralmente na forma como outros me vejam.
Recentemente, foi um luso-libanês que parou a conversa, observou-me fixamente durante um interminável minuto e depois irrompeu numa celebração tribal de quem descobriu uma nova lei da física. Disse-me que havia, no Quebeque, um tipo – lá está – igualzinho a mim, cara chapada, gestos e tudo, forma de falar, única diferença: estar sempre enrodilhado num cachecol. Um produtor, ao que parece. Stéphane Raymond de seu nome. “Tens de procurá-lo no facebook”, ditou-me. “Não tenho”, disparei, convicto de ter desferido o k.o.. “Então, googla-o.” Googlei. Aparecem-me dezenas de tipos diferentes, nenhum sequer razoavelmente parecido com a fotografia tipo passe de mim mesmo que aqui tenho dentro.
Há uns anos, quando entrei pela primeira vez num determinado café para os lados da Avenida da Roma, os empregados – brasileiros – pareciam ter visto entrar uma assombração. Um destemido, trazendo-me a meia de leite e o croissant encomendados, lá perguntou a medo: “Olha… Você não é Renato Russo, não?” Não, mas googlei-o (ou yahooei-o, não sei. Já foi há algum tempo). Era o vocalista da Legião Urbana. Um tipo de respeito, pensei. Não muito parecido, pensei também. “Cara pensador”, garantiram-me no café. “Morreu de SIDA faz um tempão”, acrescentaram. Percebi melhor, então, a expressão de assombro ao verem-me entrar. Apesar de tudo, valeu-me muito café à borla nas visitas seguintes.
De resto, já me garantiram ser igualzinho a um primo de Coimbra, a um amigo da Madeira, a um colega de trabalho da Chamusca, a um cantor de musiquinha muiiiiito ligeira, a um actor de sitcoms, ao Vitinho (sim. O Vitinho. Esse.) e ao Robby Krieger (caro leitor, chegados a este ponto, convido-a googlar agora você mesmo estas duas últimas personagens e verifique se é humanamente possível conceber alguém que seja ao mesmo tempo igualzinho ao Vitinho e igualzinho ao Robby Krieger). Penso mesmo que um amigo próximo sugeriu já haver grandes semelhanças entre mim e James Baldwin, esse escritor notável… e preto.
Nos últimos meses, diferentes pessoas em diferentes momentos juraram que havia um rebelde líbio nas fotos dos jornais que era tal-e-qual-cara-chapada este humilde açoriano que vos escreve.
Ainda não sei o que farei. O meu pai jura-me de mãos postas que nunca pôs um pé em Tripoli e que, por mais que tentasse, nunca conseguiria gerar um desenho animado.
Não sei se compre. Um dia destes, parto em busca desta malta toda e junto-a para discutir umas ideias. Há-de haver uma forma qualquer de lucrarmos com este mistério.
Alguma coisa acontece no meu coração quando passo a Ponte do Freixo e avisto o Estádio do Dragão – obrigadinho Caetano.
Nasci no Porto, mas não sou tripeiro. Não há gota do meu sangue que não seja minhota, e vivo desde os três anos de idade em Lisboa. No Porto tenho dois ou três amigos herdados dos meus pais, memória duma paixoneta de Verão, recordações do meu padrinho responsável por me ter cravado na alma um amor incondicional e desmedido pelo sagrado F.C. Porto e pouco mais. A vida ainda me deu mais meia dúzia de pessoas que moram no Porto, mas de que poderia ser amigo vivessem em Mangualde ou Bogotá.
Fora as memórias postiças, aquelas que depois confundimos com reais do género “foi para a Rua Carlos Malheiro Dias que vieste quando nasceste” ou “íamos para a Praia dos Beijinhos com a Almerinda” e os vãos de escada onde troquei beijos apaixonados, não há rua que me faça suspirar de saudade, café que me apresse a ir ou lacrimejante passeio nostálgico. Não sou capaz de descobrir grandes diferenças entre tripeiros e alfacinhas, a abundante chuva não me comove, gosto tanto de granito como de pedra-pomes e até me irrita um bocadinho a conversa provinciana sobre Lisboa que se ouve amiúde. E, no entanto ...
Talvez os lugares nos escolham. Talvez a cidade me diga que aquele é o meu lugar sem que se dê ao trabalho de me dar razões. Talvez, por uma estranha reacção química, o meu dna seja mais compatível com a humidade da Foz do que com a de Sintra. Talvez o som do sotaque tripeiro me amacie a alma, sem que eu perceba como. Talvez as ruas escuras, misteriosas, sejam o meu habitat natural e não esta bebedeira de luz de Lisboa. Talvez, talvez, talvez. Talvez o meu consciente goste duma coisa e o meu inconsciente doutra. Sei lá eu. Mas uma coisita a vida já me ensinou: há respostas que nunca terei.
Não é, não é. Por mais que lhes aconteçam catástrofes e tragédias e tudo o que de mau podemos imaginar ninguém tem compaixão por eles (podia escrever por nós mas isto é uma crónica não um conto). Porquê? Porque são ricos. E aos ricos pode acontecer tudo - que nada há-de ser o suficiente para pagarem o pecado de serem ricos. Por isso estou com os ricos nesta altura difícil em que são novamente vilipendiados, agora por não serem taxados pelas suas grandes fortunas (algo que acho errado mas não é esse o tema). Ser rico é das coisas mais difíceis que se pode ser. É verdade. Ninguém leva a sério um rico doente. A doença do rico é um capricho. Ou então o resultado de negligência do próprio. Se é rico porque é que não foi a um grande especialista mundial tratar do assunto? Ou um rico triste. Um rico triste é, aos olhos do mundo, um contra-senso inaceitável. E existem, sabemo-lo, tantos ricos tristes para aí.
Há poucas figuras mais trágicas do que os ricos velhos (dizia e bem Jacques Brel: os velhos, mesmo os ricos, são pobres). Rodeados de gente que tudo vai herdar - e muitas vezes demasiado concentrada nisso. Ou então, noutros casos, sozinhos nos seus casarões, recordando aquilo que foram e não podem ser porque as pernas já não deixam. Alguns andam pelos lares caros. Sem que ninguém os vá ver. Olhados de lado - nos seus anos de viço foram "uns priviegiados, tinham criadagem e o raio!". O ressentimento contra a riqueza alheia é uma das realidades mais difíceis de esconder. Salta. Vem sempre à baila. Permanece mesmo em relação aos ex-ricos, das figuras mais terríveis que a vida pode conhecer. Não são pessoas para serem respeitadas. Amadas. Mimadas. Tiveram tudo na mão e deixaram cair. Nem jeito para serem ricos têm.
É aqui que queria chegar: os ricos, por muito "guito" que tenham, são, também eles, para usar uma certa terminologia, excluídos da sociedade. Tal como os pobres, não fazem parte. Quer num caso quer noutro as pessoas só lhes ligam para os culpar da situação. Devia também haver um neo-realismo para eles - sim, têm sido menos descritos e pouco rigorosamente contados porque mesmo os escritores pintam muitas vezes o mundo a preto e branco. Estão fora da sociedade e vão estar, nestes dias de rankings, cada vez mais fora, isolados nos seus pódios douradamente vazios. Digo-vos: eu não queria ser rico. Nem que me pagassem.
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