Quarta-feira, 15 de Junho de 2011

Um jantar com Michael Neuberger

Um dos problemas de explicar o "pleasure of finding things out" é que quase ninguém descobriu ou descobrirá alguma coisa de jeito. O explicando poderá já ter experimentado uma epifania na Wikipedia quando leu a entrada sobre o Método de Hondt, em tempos abriu um relógio de corda e fez até uma experiência controlada quando pediu a um amigo que também telefonasse à sua ex-namorada por volta das 5 da tarde, mas não adianta procurar na sua biografia um episódio que contenha a essência do prazer de descobrir e pedir-lhe que multiplique essa sensação por mil, não apenas por ser perigoso fazer contas com a rejeição de uma ex-namorada, mas sobretudo porque há extrapolações impossíveis. De modo que explicar isto é um pouco como aqueles exercícios de representação teatral em que se pede o impossível - William Hurt contorcendo-se a explicar Bach a uma surda (2' 11''). Conviver com alguém que descobriu alguma coisa deve então ser um privilégio, mesmo que olhemos para essa pessoa como se olha para o Grand Canyon, isto é, iludidos de que por estarmos a par da erosão e da escala de tempo conseguimos compreender algo que nos ultrapassa. Algo que não se pode extrapolar. 

 

Passei metade do dia a pensar na forma como apresentar Michael Neuberger, o conferencista meu convidado, sem acertar no tom. O tom certo é um equilíbrio de contenção institucional e calor humano, um “Oh” de comoção e um “Ah Ah” de diversão, com um remate que deixa a audiência ao rubro. Não saiu assim, refugiei-me na batida imagem do homem que resolve o puzzle e percebi logo que na manhã seguinte, ao acordar, que é quando a consciência vem pedir satisfações pelas asneiras da véspera, iria ouvir das boas. Mas a conferência teve lugar, Michael cumpriu e depois fomos jantar a um restaurante de peixe.

 

Quase toda a gente percebe de garoupa o suficiente para pedir uma e imaginar o peixe a partir da posta. Quase ninguém percebe de hipermutação somática e é capaz de imaginar o significado do emparelhamento da sequência de letras “AGCT”  com “TCGA”, em que o “C” está sublinhado em ambas. Nesse sentido, éramos seres estranhos. Depois do primeiro Muralhas, eu esforçava-me por traduzir “garoupa” e descrever o peixe, Michael mal reagia ao termo “grouper” e, com a naturalidade de quem descobre que fala o mesmo dialecto estranho depois de esforços inúteis na língua supostamente franca, logo nos concentrámos no “AGCT” com “TCGA” que ele desenhou na toalha de papel. Fui então assaltado por um desejo infantil que não mais me abandonou, antes saiu reforçado quando a conversa divergiu depois para os grandes temas: a política de ciência, o publish or perish, os limites da democracia e se devíamos passar para um Planalto ou continuar no Muralhas. É que o Michael, que em 2001 resolveu um puzzle importante e cujo trabalho eu lia há muitos anos, parecia ser, além de um excelente cientista, um homem decente, não particularmente excêntrico, mas nada aborrecido, com prazer em discutir e sem a atitude predatória dos big sharks. Foi quanto bastou para que nascesse uma surpreendente admiração amistosa,  porque com os anos vamos admirando de novo cada vez menos e com um grau de pureza cada vez menor – é a admiração a puxar à nostalgia, a admiração com uma ponta de inveja, a admiração com um redentor  “mas é uma besta”.

 

Já com a conta paga e fora do restaurante, invento com péssimo teatro uma desculpa para voltar lá dentro, aproximo-me da mesa, rasgo a toalha de papel, dobro e meto no bolso as letrinhas do Neuberger. O “AGCT” e “TCGT” estão pregados a pionés na cortiça que tenho no escritório e a porção de papel não está sequer assinada, mas tem manchas de gordura a fazer de selo de garantia. “Grouper? Grouper? Are you sure?”

 

 

publicado por Vasco M. Barreto às 09:00
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Terça-feira, 14 de Junho de 2011

É a vidinha

Hoje apetecia-me mesmo não escrever. Como sou muito bom a arranjar desculpas para tudo e mais alguma coisa não me seria muito difícil arranjar uma boa historieta, desde que não a tivesse de escrever bem entendido. Até é possível que não fosse apenas uma desculpa, é provável que ande mesmo chateado, e, para não variar, comigo mesmo. Mas o merceeiro, que nunca deixarei de ser, é mais forte que os meus apetites.

A actividade do merceeiro é vender – confessem-se espantados com esta revelação. Se não tivermos azeite da melhor qualidade, vendemos assim um mais fraquinho; se não houver óleo Fula, o cliente não irá pior com o Frigi; a água Vidago não será propriamente a da preferência do amável cliente, mas se não estiver disponível a das Pedras, lá terá de ser. Se não se vender não se é merceeiro. Não se vende sempre o melhor, nem sequer o que queria vender, mas não é o produto que define o comerciante, é a venda. Quando deixar de conseguir vender deixa de o ser. Ora, o primeiro passo para não transaccionar a sua singela mercadoria é, pura e simplesmente, não a pôr ao dispor do cliente. A segunda possibilidade é não a conseguir vender.

Isto da escrita é exactamente a mesma coisa. Um tipo deixa de ser cronista,  articulista ou seja lá o que for, se deixar de entregar a mercadoria. Umas vezes o produto não é grande coisa, outras será mais satisfatório, outras, ainda, será uma grandessíssima merda, mas enquanto a disponibilizar e um leitor se der ao trabalho de lhe passar os olhos por cima temos artista.

Pois claro, o escriba sofre mais. Sofre o caraças. Quem pode sofrer é o inadvertido consumidor duma crónica que após a leitura se pergunta porque diabo perdeu cinco preciosos minutos a ler uma estucha qualquer. Seja qual for o ângulo escolhido a angústia do merceeiro e do cliente é sempre maior.

O cronista pode não se lembrar da inqualificável crónica que escreveu há dois anos e de, certeza absoluta, o leitor também não. Já o merceeiro que vendeu um ovo estragado há dez anos jamais se esquecerá dos problemas que teve, e nem vale a pena referir os sentimentos do cavalheiro ou donzela para com o nosso merceeiro e a memória guardada.

Isto que fazemos no Sinusite ou noutro sítio qualquer é muito giro e tal, mas não passa da coisa mais simples do mundo: vender. A nossa angústia é igual ao de qualquer outro cidadão: tem de ser, todos os dias ou todas as segundas ou todos os meses, mas tem de ser. Nada a fazer. Claro que se pode optar por ser merceeiro. Quero apenas lembrar que depois também tem de se ser merceeiro todos os dias. É escolher.

publicado por Pedro Marques Lopes às 13:22
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Segunda-feira, 13 de Junho de 2011

o sonho espartano

Nada me provoca mais inveja do que as agendas dos homens e mulheres ditos de sucesso. Geralmente, aparecem numa caixa à parte,  acompanhando a grande entrevista no jornal ou o perfil ou o “um dia com”. Há uma bondade antropológica na sua exposição. Funcionam como uma receita: este é o segredo dele; se quiseres ser assim, rico, famoso e bem sucedido, é desta forma que deves viver.

Inevitavelmente, descobrimos que são uns paranóicos da disciplina. Levantam-se ainda o próprio Sol esbugalha os olhos, meia hora depois já leram todos os jornais do mundo ocidental, às 8h já estão no escritório depois de uma refrescante incursão pelo ginásio, das tantas às tantas documentam-se, das x às y reúnem e das w às z deliberam. Ao fim do dia, ainda têm tempo para um golfe, uma exposição, um jantar de família, brincar com os miúdos, ver um filme, ler a 26ª biografia do Churchill e, lá pela meia-noite, dormir o sono dos justos.

O impacto que isto me provoca deixa-me em geral num estado letárgico que começa logo a concorrer para o fracasso. Sigo atordoado até final do dia magicando como alcançam estes imortais tão espartana organização. Num dia, fazem caber trabalho, desporto, cultura e família; eu tenho dificuldade em conjugá-los num intervalo de tempo de, digamos, um ano (partindo do pressuposto de que correr atrás dos gatos pela casa conta como desporto). Porém, deito-me com esta convicção: amanhã, tudo será diferente. Amanhã, seguirei a receita do Belmiro Salgado Soares dos Ulrich. Amanhã, também eu ditarei a minha agenda de sucesso a uma jornalista fascinada.

Embalado nesse sonho, desligo o despertador, acordo meia hora mais tarde, atropelo os gatos no caminho entre a casa de banho e a cozinha, tenho dificuldade em focar a vista nas letrinhas do editorial do jornal por causa da turbulência do eléctrico. Ao final da manhã, alcanço finalmente o estado de concentração que me permite trabalhar e saio para o almoço. À tarde, um inesperado telefonema materno consome-me hora e meia, as interrupções para as piadas e angústias dos colegas de escritório outra hora e meia, a reunião inesperada o resto do dia. Regresso a casa, ponho um filme a correr no dvd, preparo o jantar, afugento os gatos, na falta de filhos ligo a um primo. O filme acaba, lava-se a loiça, olha-se a capa do livro, lê-se a badana. Sento-me ao computador, escrevo furiosamente tudo quanto falhei de dia. Deito-me às três, exausto, os gatos perdoam-se e vêm aninhar-se, faço-lhes festas, busco-lhes nos olhos compreensão para o meu fracasso. Ele está lá. Tento acabar de ler o jornal. Adormeço a meio, antes de saber se por lá estaria uma entrevista a um romântico falhado e sua agenda rigorosa: às 8h falhar, às 10h correr, às 20h abraçar, 22h fazer as pazes consigo mesmo, 23h esquecer tudo isto, 25h sonhar com dias longos, 26h aceitar que aquelas agendas dos homens de sucesso são, muito provavelmente, um embuste.

publicado por Alexandre Borges às 03:12
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Sexta-feira, 10 de Junho de 2011

Perceber isto

Um tipo sonha, um tipo tem delírios, um tipo cai em si. O país está igualzinho depois da jornada das eleições - a olhar demasiado para cima, à espera que os "poderosos" resolvam os seus problemas. Sente-se as pessoas agitadas, suspensas do que é que o novo primeiro-ministro vai fazer e dizer. Parece que são poucos os que se concentram verdadeiramente nas suas vidinhas. Aguarda-se, a qualquer momento, que os agentes poderosos da Nação (esses Super Homens Políticos) tenham um gesto, levantem a mão para uma ordem, mandem a rapaziada trabalhar, arranjem um emprego ao pessoal. Mesmo personagens de áreas que deviam estar alheias às mudanças na governação alimentam-se do ruído que é a conversinha sobre a troca de lugares nos territórios de comando e nas assessorias várias. É triste, no mínimo. E sintomático.

 

Mesmo o país que não depende directamente (eu sei, todos dependemos de uma ou outra maneira) de decisões políticas coloca-se nessa posição - de esperar, de comentar furiosa e abundamentemente, que é uma outra forma de esperar. Às vezes basta uma observação de esquina para perceber esse dado. Anda muita gente inquieta, nervosa - a palrar sobre o assunto eleições nas esquinas. Não, não é por causa do impacto de novas medidas nas suas existências  e na existência do país (essas já estão, sabemo-lo, traçadas por outros). É um misto de dependência do paizinho e vontade de fazer tudo para não olhar para o trabalho que se tem à frente.

 

 

Perdoem-me a insânia (deve ser dos Santos): ainda idealizo um país que, mais do que andar a passar a vida a olhar para cima, se procura concentrar nas grandes e pequenas realizações de todos os dias  (comece-se, sugiro, pela rua e pelo bairro). É uma questão de fundo, de mudança de filosofia de vida, de olhar sobre o mundo, que, sei disso, não será fácil de tratar e de resolver. Mas é um desejo pessoal, mesmo sob uma forma demente. Os portugueses ainda vivem misteriosamente com a crença de que os políticos e a política (com maiúsculas, claro) vão resolver os seus problemas todos. Acho até que há gente que julga que Passos e Portas - e todos os deputados da Nação e o presidente da República e o presidente da junta e o presidente do condomínio - vão resolver os seus problemas amorosos e aquela implicância com o chefe que vem de há umas semanas para cá. Não vão, vão. Vão tratar de outros assuntos, com uma margem de manobra mínima. E, já agora, se quisermos ser um bocadinho pragmáticos, também vão tratar das suas vidinhas. Eu tenho um sonho, como o Martim. Um dia ainda vamos conseguir perceber isto.

publicado por Nuno Costa Santos às 10:01
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Quinta-feira, 9 de Junho de 2011

A capitulação do omnívoro

A propósito de uma viagem ao México, o Pedro faz um dois-em-um na construção pública do conservador, ao defender a superioridade da civilização ocidental e pôr em causa o fascínio por certos destinos de férias e actividades de lazer. Admitindo que não o tresli, apresso-me a dizer que nunca percebi esta associação. Sem pôr em causa sequer a ideia de que há civilizações superiores, para não perder muito tempo, concentro-me no conservador com fobia de férias exóticas, por ser um estereótipo oposto ao freak que vai à procura da natureza, das civilizações que em algum momento foram colonizadas e daquele misterioso homem ainda mais improvável do que o yeti: o bom selvagem de Rousseau. Ambos estão enganados. Porque devemos conhecer a Itália antes do México, mas o México antes da Escandinávia; porque devemos buscar a Europa de propósito antes dos 25 anos e depois dos 65, mas no período das nossas vidas em que a mutiplicação do vigor físico pela autonomia financeira regista os valores mais altos é imperativo evitar as deslocações voluntárias dentro eixo do mal composto pela Europa e o América do Norte. O argumento fraco é que haverá deslocações em trabalho e obrigações sociais (casamentos e funerais) suficientes para irmos saciando a curiosidade pelas nuances na civilização ocidental. O argumento forte toma a forma de regra: quanto menor for a vontade de viver numa determinada sociedade, maior será a vontade de a visitar. Mas abandonemos a Coreia do Norte e regressemos ao México.

 

Continua

 

publicado por Vasco M. Barreto às 23:16
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Terça-feira, 7 de Junho de 2011

Stress

Aqui há atrasado, uma amiga descrevia-me uma interessantíssima viagem ao México. Descansar, dizia ela. Não dei o meu habitual berro de espanto ao ouvir uma cidadã dizer que andar vinte horas de avião, mais umas tantas de carro e enfiar-se num lugar com umas centenas de turistas mais as criancinhas histéricas é considerado descansar. Estava sol, o Porto tinha ganhado e assim sendo a minha disposição permitia-me ouvir os mais lancinantes disparates sem me encanitar todo.

Depois das habituais histórias sobre as magníficas praias e os muito simpáticos americanos que tinha conhecido, relatou-me o ponto alto da viagem.

Tinha ido à selva, ou a um sítio parecido cheio de árvores e bichos, visitar uma tribo que, segundo ela, ainda vivia como há mil e tal anos atrás.  

Vivem do que a terra lhes dá, sem electricidade, telefones, televisão, carros, escolas hospitais, enfim, longe de todos essas invenções infernais. Aqueles privilegiados estão em comunhão com a natureza o que lhes dá uma felicidade sem limites. Mas, sobretudo, não sofrem da mais terrível doença do homem moderno: o stress.  

Nesta altura comecei a achar que a conversa poderia estar a ir para um ponto em que a minha chávena de café se podia tornar num perigoso objecto de arremesso.

 

No meu dicionário, stress vem associado a ansiedade, nervosismo, tensão. Ora, não me parece que um tipo que ande descalço, com as vergonhas cobertas com uma folha de palmeira e que se tenha de defender de cobras e outros antipáticos animais apenas armado com uns pauzitos e umas pedras não sofra de ansiedade. Também não consigo perceber assim muito bem que um homem não fique ligeiramente nervoso por não ter maneira de tratar uma constipação. E nem falemos de casas de banho: eu acho que ficaria bastante stressado se tivesse de fazer cocó no meio de milhões de insectos. Manias, às tantas. Mas ou muito me engano ou era coisa para me deixar gago ou com prisão de ventre para o resto dos meus dias.

 

Claro está, a minha amiga pode pensar que há stress bom e mau. Um tipo meter-se num carro, estar sentado no quentinho, a ouvir música, e passada uma hora chegar ao emprego onde está oito ou dez horas para poder comprar disparates como educação para os filhos, umas meias para o frio, papel higiénico, é stress mau. Já passar um dia a andar descalço de lança na mão a caçar bichos sem sequer saber se vai poder dar de comer às crianças, deitar-se no chão debaixo duma palhota e estar à mercê de todas as doenças do simposium é stress bom.  

 

Eu cá gosto do stress mau. Gostos. Gosto tanto que até adoro os maiores símbolos dessa magnifica doença: os SPAs.

Os Spas são fantásticos porque respeitam o stress. Sabem tão bem que ele é vital para as nossas vidas que nos preparam para cada vez mais nervosismo, luta e demais maçadas. A malta vai lá e relaxa, para na semana seguinte nos podermos enervar ainda mais. “Ahhh, estive no Spa de Ferrão Ferro e vim de lá com as pilhas carregadas”. E para que servirão as tais pilhitas? Pois claro, para as gastarmos em stress.

 

 

 

 

 

publicado por Pedro Marques Lopes às 00:06
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Segunda-feira, 6 de Junho de 2011

quando formos pequeninos

Certo. É fácil perceber que muitas meninas sonharam ser bailarinas. E meninos futebolistas. E outros actores, músicos, apresentadores, até jornalistas. Pintores, cientistas, escritores, grandes cozinheiros. Mas, de toda a galeria de estrelas da praça pública, há uma carreira que não cabe, nem à martelada, na galeria de sonhos infantis: a política.

Recordemos a sacramental pergunta “E tu? O que queres ser quando fores grande?”. Consegue imaginar-se uma voz pequenina, doce, do outro lado, dizendo “político”? Não se consegue. E, caso acontecesse, o pai e o psicólogo eram imediatamente chamados à escola. “Olhe que o menino anda com comportamentos muito esquisitos… Sobe às cadeiras e põe-se a discursar para os colegas. Abre o estojo e distribui esferográficas. Telefona para o jornal da escola e diz que a notícia sobre a chuva no pavilhão não pode sair…”

Não há memória. Os miúdos quererão ser astronautas, exploradores subaquáticos, até taxistas (conheço um caso muito próximo); jamais políticos. E isso é curioso porque não haveria projecto mais adequado à inocência pueril. Nenhuma outra profissão serviria melhor os sonhos de mudar o mundo e, não menos importante, ter todos os brinquedos do mercado.

Num processo de crescimento normal, suponho, a atracção pela política só aparece lá para os 17, 18 anos, quando as leituras obrigatórias do fim de liceu nos levam a Platão. Contudo, descobrimos, logo de seguida, que as juventudes partidárias já estão cheias de coleguinhas que para lá entraram aos 15 ou 16. Coleguinhas que nunca leram filosofia política nem pareceram interessar-se por nada que estivesse para além do fim da rua. Coleguinhas que nos levam essa eternidade de um ou dois anos de avanço na política real e que isso os habilita a uma formatação de raciocínio e discurso que nos faz sentir demasiado do lado de fora para querer estar do lado de dentro.

E o esquisso tardio de sonho fica rapidamente por ali, desaparecendo mais depressa do que surgira.

O resto, diria, é história. O passar dos anos leva-nos à desidentificação colectiva com uma classe onde a ingenuidade é mais duramente punida do que a corrupção, uma classe cínica a que respondemos com cinismo, uma categoria de gente que juramos ter tido apenas a perspicácia e o despudor de escolher o caminho mais rápido para o poder.

Em que momento nos desencontrámos de quem deveríamos estar mais próximos? Em que circunstância os autorizámos a comportar-se como se não tivessem crescido nas mesmas ruas do que nós? Em que dia nos demitimos de tudo isto e passámos a aceitar, como uma fatalidade, que haveria um “eles” e um “nós”?

Perguntas sem resposta. Sobra um desejo megalómano de pátio de escola, anterior a todas as leituras e desapontamentos: que venha o dia de não nos demitirmos. O dia em que nós, os escritores, astronautas e bailarinas concretizados ou adiados, tomamos a nossa vida em mãos. Sem ingenuidades nem cinismos. Só a brutal certeza de que não perderemos este jogo por falta de comparência.

publicado por Alexandre Borges às 13:56
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Domingo, 5 de Junho de 2011

OK, do you want something simple? (auto-retrato forçado)

 [NB: Hoje é dia de eleições, em que se discute o destino colectivo. Nada melhor, portanto, do que um exercício narcísico que tive de efectuar há uns anos, a pedidos vários. Do que escrevi, tudo se mantém. Espero entretanto que o leitor tenha votado, isso sim bastante mais importante]

 

Pediram-me que ordenasse caracteristicas próprias, idiossincracias diversas. A primeira: ser avesso a fazer isso mesmo, pelo menos sóbrio. E quando deixo de o estar começo a dizer a verdade, o que é pior.

Assim sendo , aqui fica o que consegui encontrar, sem ordem de irritação para terceiros ou importância:

 

1.É-me dificil completar mais de quatro frases sem lá meter uma expressão idiomática anglo-saxónica, ou uma mera palavrinha que seja. Como tenho amigos que fazem o mesmo, não dou por isso; os outros aguentam ou maçam-se.

 

2.Tenho a mania de que sei gramática e escrever. Mas passa sempre. Basta ler Camilo e António Vieira.

 

3.Tenho uma obsessão de classe média pelas boas maneiras. «Manners before morals» não é para mim um aforismo giro: é a Verdade.

 

4.Sou excessivamente educado com empregados de mesa em particular e funcionários públicos em geral.

 

5.Pior ainda, justifico literariamente a alínea anterior mal tenha oportunidade («Estás a ver o Anthony Beavis do Eyeless In Gaza, do Huxley ?

Aquela parte em que ele é super-educado com uma florista porque assim se protege das« classes baixas»...). Deus me perdoe.

 

6.Aplico uma canção a qualquer episódio da minha vida, transformando-a assim num ciclópico musical.

 

7.Tenho a mania de que sou o português que mais sabe sobre Frank Sinatra e tudo à volta. E desculpem lá, provavelmente é verdade.

 

8.Quando vou conhecer alguém, gosto de ir carregado de preconceitos, para confirmar ou deslumbrar-me.

 

9.Fico contente por ficar triste (cá está: Glad To Be Unhappy, Richard Rodgers/Lorenz Hart)

 

10.Tenho a mania de me apaixonar, normalmente pela própria ideia desse estado.

 

11. Tudo o que está acima descrito é absolutamente inútil.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 18:44
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Sexta-feira, 3 de Junho de 2011

Álbum de Família

 

 

Arrumei-o na nova estante por estes dias. E voltei a folheá-lo, como quem regressa, por um instante, à terra. É um álbum de fotografias intitulado "Açores Profundos". Pergunta-se com letimidade: o que são os “Açores profundos”? Ou por outra: de que falamos quando falamos de “Açores Profundos”? Dos Açores das lagoas e das grotas quase inacessíveis? Do coração das ilhas, por vezes habitado por gente que vive de costas para o mar? Dos pensamentos ocultos dos que seguem todos os dias para os pastos e para a pesca? Para o fotógrafo Paulo Monteiro, os “Açores Profundos” são os Açores da religião. Melhor: os Açores dos rituais religiosos que se praticam um pouco por todo o arquipélago. É uma opção acertada - porque possível. A alma açoriana passa necessariamente por aqui.

 

Folhear este álbum é, pois, como que espreitar para dentro de uma igreja – um edifício espiritual onde se reúnem as manifestações religiosas açorianas. Há cultos vários no espaço, mas há um que se destaca com evidência e naturalidade: o culto ao Espírito Santo, o mais popular e universal nas ilhas. O livro começa justamente por aí  - e por um improvável cruzamento no meio do Atlântico entre o cristianismo e o islamismo. Sim, à porta desta igreja está uma coroa – uma coroa real, do Império da Praça, da freguesia dos Cedros, na ilha do Faial, que, segundo uma lenda, terá pertencido a um rei mouro.

 

As fotografias merecem ser olhadas uma a uma, com vagar e atenção ao detalhe. E há neste álbum óptimos detalhes: o céu escuro e dominador por cima dos romeiros, a determinação de uma rapariga que tapa os ouvidos para não ouvir os foguetes, o movimento da “rainha” que, dentro de uma capela, roda o vestido para a fotografia. Mas pode-se também passar as páginas como quem folheia um álbum de fotografias de família. Até porque há sempre um lado familiar nestes “retratos”. Nos olhares, nos gestos suspensos, nos vestidos “artesanais” das raparigas que vão nas coroações, nos pães – o mais caseiro dos elementos. Álamo Oliveira, um dos dois escritores que têm textos no livro, escreve que “neste álbum, cada imagem se transforma numa sucessão de metáforas”. Percebe-se a nota e o sentido interpretativo do autor mas, a meu ver, a força deste álbum está na secura das fotografias. Na sua simplicidade. Que se basta a si própria. Que capta sem artifícios de maior estas gentes devotas.

 

Dentro deste catálogo, existem fotografias que se destacam, naturalmente. O pagamento de uma promessa feito por uma anafada mulher que leva um bebé no dorso. A caminhada dos romeiros durante um aguaceiro. Os instantes seguintes à cerimónia de baptismo de um barco de pesca artesanal - a fotografia da página 109, precedida de um texto feliz de Madalena San-Bento, a outra escritora com textos neste livro. Nesta fotografia encontramos um quadro com um Cristo mas, ela própria, podia ser um quadro. Há um barco. Uma escada que permite o acesso ao mesmo. Dentro do barco estão crianças. E uma mulher – possivelmente a mulher de um dos pescadores que vai para o mar, para citar a autora, “num equilíbrio precário de valentia e fatalidade”.

 

Folhear este álbum lembra-me que talvez faça falta revelar uns outros Açores, igualmente “profundos” e contemporâneos – aqueles que fundem de forma ainda mais radical o velho e o novo arquipélago. Recriando a frase de Álamo Oliveira: talvez fosse bom e pertinente levar ainda mais longe a “cumplicidade convivencial do religioso com o profano”. Há um novo arquipélago, igualmente denso, menos conhecido, por contar e registar. Mais urbano, mais impuro - sem deixar de ser religioso. Um arquipélago que une o altar e o centro comercial. Talvez fique para outras núpcias a fixação destes contrastes.

publicado por Nuno Costa Santos às 18:23
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Quarta-feira, 1 de Junho de 2011

Um longo dia até ao Charlie Trotter's

Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer

 

O Alexandre ridiculariza o obcecado autor de uma autobiografia que apenas interessa ao biografado e o meu homónimo procura um sentido para a existência. Como ainda estou aquém da idade suficiente para projectar alguma autoridade sobre estas questões e eles já perderam a juventude necessária ao crédulo, só me resta defender o epicurismo, cuja grande vantagem sobre todas as outras filosofias de vida é a certeza de que a caminhada terá sempre valido a pena, mesmo se percebermos um dia que nos enganámos na direcção. Serve também de pretexto para rebater uma interpretação abusiva de uma famosa frase de Tolstói: a de que a infelicidade diversifica e a felicidade homogeneíza. Por ser assim com as famílias, como o russo escreveu, não se pode concluir que também se aplica aos indivíduos. Pelo contrário, não há dois epicuristas que se confundam, porque ambos falharam a busca do prazer completo, mas cada um à sua maneira. Por exemplo, é quase impossível encontrar duas pessoas que tenham visitado os mesmos grandes restaurantes, a menos que estejam casadas  - Tolstói realmente rules, porque muitos destes casais agregam-se em double dates e até grupos excursionistas, homogeneizando-se.

 

Quando a classe média com ideais de esquerda admite ir a um restaurante com estrelas Michelin, tem lugar na cabeça um exercício de equilibrismo, impensável para os mais ricos e impossível para os mais pobres, que explica um aparente paradoxo: incomoda mais o capricho de um jantar caro do que a extravagância de um jantar caríssimo. Tal sucede porque só com um jantar que custa o que daria para alimentar um cidadão de um país subdesenvolvido durante um ano inteiro pode o peso na consciência  ser contrabalançado pelo enorme peso na carteira, pois acima de certos valores, à medida que o preço sobe, o peso aumenta mais depressa sobre a carteira do que sobre a consciência e onde no gráfico - imaginem um - estas linhas se cruzam não vemos apenas um break even, é mesmo um break free. Acresce que, quanto mais excepcional for a experiência, mais reforçado fica o efeito atenuante da devoção. Pelo menos foi nestes raciocínios que passei parte da tarde do dia em que tive reserva para jantar no Charlie Trotter's

 

A classe média associa a ida a um destes restaurantes a uma qualquer celebração, mas no meu caso o denominador comum foi a companhia da  mesma pessoa. A mulher da minha vida? Não. O careca da minha vida. Chama-se Th. e é o gourmet e gourmand que me convenceu a ser seu parceiro no projecto megalómano de visitar todos os grandes restaurantes do mundo. O plano aparentemente colapsou por falta de verba e só fomos a três restaurantes, todos nos EUA de W. Bush, onde então vivíamos. Houve peripécias - no Wd50, expliquei ao maître que se um jantar de gastronomia molecular me deixa com vontade de ir comer uma vulgar fatia de pizza a seguir, em vez de retocar as fórmulas e cortar centésimas no tempo de cozedura do ovo escalfado, o melhor é reforçar as doses; no Daniel, sentou-se longe da nossa mesa uma sósia da Nastassja Kinski circa 1980 que à saída agraciou Th. com um sorriso. Mas só o Charlie Trotter's nos marcou e sempre que tento contar aquela noite oiço uma Helen Sinclar cá dentro: "No, no, don't speak. Don't speak".

 

Chicago deve ser a cidade a única das cidades que conheço em que as três breves estadias em alturas diferentes se fundiram num único dia. Esta distorção talvez seja um efeito secundário da forma de catalogação que uma memória débil encontrou e, no caso concreto, produziu um dia muito preenchido. 8:00 AM: no café do aquário da cidade, muito perto do tanque dos golfinhos, que - gosto de corrigir esta ideia errada - não são monogâmicos, Th., em jeito de preparador físico que recupera o jogador, explica-me - mas sem violentar muito a verdade - que eu iria voltar a encontrar alguém. 9:00 AM: estamos no The Art Institute of Chicago, onde daí a pouco tempo terei um daqueles instantes de lusofilia bacoca diante de um quadro de Vieira da Silva - Th. está não sei em que sala, porque gostamos de apreciar arte sem a pressão do comentário. 11:00 AM: deambulamos pela cidade e acabamos meio perdidos numa zona run down, quase uma ruína industrial, tão próxima do centro que ficamos com a sensação de em algum momento termos cruzado uma porta do tempo; 1:00 PM: estamos no Museu de História Natural e Th. tira apontamentos de memória para a exposição de Biologia que organizará - vemos o museu juntos, porque, ao contrário de um Edward Hopper,  animais embalsamados e mesmo borboletas tropicais trespassadas por alfinetes não induzem estados contemplativos. 3:00 PM: como nenhum de nós trabalha de fato e gravata, preparamos a noite auxiliados por St. Anthony Scotfield, o "wardrobe consultant" que adverte um Th. tentado por uma camisa rosa para a absoluta certeza na orientação sexual de que dá mostras quem enverga tal peça de roupa.  4:00 PM naquela que é seguramente a mais deslocada destas memórias, porque sei que não houve matinés de música em Chicago, estamos no Legends, o clube de Buddy Guy, com a irritante atitude de branco a querer ser aceite entre pretos só por em tempos termos escrito um blues sobre a nossa condição laboral. 5:00 PM: sesta breve no hotel para gozar umas camas que ninguém deve comprar, sob pena não de morrer a dormir, antes de dormir, dormir, dormir e mais nada fazer até morrer. 6:00 PM: numa esplanada perto da cloud gate, aquele monumento que me lembra apenas uma gigantesca gota de mercúrio, mas a outros lembra o aparelho reprodutor feminino, é com a tensão característica do relato de uma experiência pessoal que Th. desenvolve uma teoria pré-Hitchens sobre a generalizada falta de sentido de humor das mulheres, a que respondo com a tese de que as mulheres estão, na verdade, igualmente bem representadas nos grupos dos extremos, o das pessoas com pouca e o das pessoas com muita graça. 8:00 PM:  Subimos ao topo da Sears Tower, contemplamos o vazio escuro que é o lago Michigan e depois descemos. 9:00 PM: gargalhadas num clube de comédia de Chicago, o Second City, e um I told you so com o olhar após o gag improvisado de uma rapariga, por quem nos nos enamoramos até às 10 da noite. 10:00 PM: Entramos no Charlie Trotter's.

 

Termina no Sábado. Lá está ela: "No, don't speak. Don't speak".


 

 

publicado por Vasco M. Barreto às 09:59
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