1. Ontem, quando ouvia pela rádio o Jaime Gama a pedir a um deputado para terminar a sua intervenção ("Pode concluir, senhor deputado)", tive um brevíssimo delírio: e se nas intervenções da existência quotidiana das pessoas comuns também houvesse um Jaime Gaima? Imaginemos o cidadão na discoteca empenhado numa conquista de ordem romântico-sexual. Quando se começasse a esticar com (vá lá) a Sheila, ouvia o Jaime Gama: "Zé Nando, a sua intervenção já vai demasiado longa. Pode concluir, senhor Zé Nando". Sim, uma voz pausada e levemente melancólica podia - quem sabe - ajudar a imprimir alguma disciplina e algum rigor aos discursos da vidinha.
2. Há duas actividades de carácter lúdico que percebo mal: o karaoke e o paintball. No karaoke ainda há possibilidade de gozo em assistir às cantorias cómico-deprimentes de amigos, primos e ex-secretários de Estado. Mas para o paintball é que, convenhamos, não há explicação: o que é que passa pela cabeça de adultos que se reúnem com o objectivo de atirar tinta uns aos outros no meio do arvoredo?
3. Percebi, por estes dias, que nas diferentes zonas do café da esquina tenho tratamentos diferenciados. Se for para a zona de pastelaria sou "senhor". Se for para a zona de restaurante sou "doutor". E se for para o balcão sou "jovem". "Então, jovem, o que é que vai ser?". Nada. Perdi a fome.
Regresso ao convívio do leitor após 15 dias de interregno (sim, escrever neste estilo faz-me sentir uma locutora de continuidade da literatura). Retornado e com a folha em branco diante do nariz, sinto-me a reviver esses gloriosos tempos do ensino primário em que nos eram encomendadas grandes prosas acerca de temas maiores da cultura continental: as minhas férias, o meu Natal, a minha casa e esse universo maior, o tema livre. Demasiado respeitador da paciência do público, poupá-lo-ei, contudo, à redacção pormenorizada dos acontecimentos, mas deixo-o com algumas das conclusões extraídas de duas semanas de reflexão eremítica numa casa de campo algures nesse Portugal – à atenção do Pedro – real.
Conclusão 1: férias em Janeiro é bom. Toda a gente está a trabalhar menos nós, o que resulta na situação mais próxima de ter meia dúzia de escravos a abanar-nos, esse bom hábito que se perdeu. Recomendo. Outra vantagem: não há programas de Verão na tv. A tv que há continua a ser má, mas ao menos não temos de levar com o José Malhoa em calções a actuar numa emissão especial da “Praça da Alegria” na praia de Espinho.
Conclusão 2: a vida existe sem ligação à net. Poupam-se duas horas a apagar e-mails, uma hora a fazer refresh para ler actualizações das mesmas notícias, e cinco horas a seguir forwards de links para vídeos muita giros do you tube em que alguém toca a Carmen de Bizet soprando na máquina de água do escritório e outras epifanias urbanas que tais.
3: este inverno, chove como o raio, mas os meteorologistas continuam a concluir que chove sempre menos que o ano passado. Um dia destes, dedicar-lhes-emos toda uma crónica, mas enquanto isso não acontece, fica a recomendação: tirem lá os aparelhos do Sahara e instalem-nos algures de Tavira para cima.
4: no Portugal real, ainda há bilhas de gás. Tudo é mau na experiência revivalista, mas ao menos faz-nos vir à memória a vida e obra da menina da Galp pluma. Um grande bem haja, onde quer que esteja.
5: em miúdos, as férias representavam algo extraordinário: eram o botão on/off do mundo, desligavam e reiniciavam as coisas, as relações, o tempo. Isso acabou anos atrás. E é pena. É pena ter de reconhecer que, nesse aspecto, a inteligência humana esteja tão distante da esperteza das máquinas.
Última: as férias amolecem o escriba. É jogador em início de época, ainda a 70%, de acordo com o mister. Tem uma barriguita a perturbar-lhe a pontuação. Há-de ir ao ponto com o ritmo de jogo - se não quiser ir emprestado para as distritais do cronismo.
Não é novidade para ninguém que não há problemas mais importantes que os nossos. Também me parece que é do mais elementar senso comum perceber que só nós é que sabemos os verdadeiros problemas da humanidade.
“Gaza? Pois, pois. E a minha empregada que tem um quisto sebáceo?” “Eles (sempre estes desconhecidos duendes) falam da crise. E que dirão desta espondilose que não me larga?”
Esta, mais que compreensível, atitude é constatada diariamente, por qualquer um de nós, nas mais triviais conversas. Normalmente, o cidadão queixa-se de uma qualquer maleita ou faz um comentário mais ou menos sério sobre o estado da situação mundial e a coisa passa logo depois do clássico “mas vamos andando”.
O problema é se o nosso interlocutor descobre ou sabe que temos acesso a um qualquer microfone, coluna de jornal ou camera televisiva.
O cidadão pode nunca o ter ouvido, lido ou visto mas, garanto-lhe, que o primeiro comentário será de violento desagrado pelos temas que você aborda. Não por serem importantes – claro está – mas por haver coisas incomparavelmente mais importantes para serem faladas. Da experiência nas urgências do São José aos preços dos desinfectantes para caniches passando pela problemática da rigidez das cadeiras do comboio Alfa há um mundo de coisas que você se esqueceu.
Bom... esqueceu não, e é aqui que entra a segunda fase do processo.
Depois de você ser obrigado a tomar umas notas para saber o que terá de falar na próxima vez que tiver acesso a um qualquer mass-media, surge a tal fase, a que chamo a do “sorrisinho sabe tudo”.
O seu amigo, conhecido ou absoluto desconhecido que o aborda na rua, até sabe que você é um tipo honesto e, logo, que queria falar dos verdadeiros problemas da humanidade, ou seja, os dele. Ele compreende. São os gajos (sempre estes malditos duendes) que não o deixam e, claro, você tem família para sustentar.
Ponhamos as coisas desta forma inequívoca e directa: gostamos de vários grupos mas não somos capazes de vestir a camisola por todos eles. A questão decisiva está mesmo na t-shirt. Usar a t-shirt de um grupo é um acto de identidade demasiado forte para não ser ponderado, reflectido, conversado com a família. É revelar ao mundo que a nossa identidade passa por ali. É dizer à vizinhança “eu sou isto”, “eu sou as letras desta canção”, "eu sou os tiques daquele tipo", eu sou aquelas asneiras e patifarias. Eu sei, é uma pergunta demasiado séria para ser respondida assim em público: quais as bandas e artistas que temos orgulho em envergar mesmo quando vamos ao Lidl Xabregas?
Os campeões: Duda, Murça, Simões, Freitas, Gabriel, Fonseca, Rodolfo, Octávio, Ademir, Gomes e Oliveira
Há muitos, muitos anos e fruto de razões que agora não interessam para esta história mas que lembram uns episódios recentes, os jogadores do FC Porto tinham algum receio de vir jogar ao estádio da Luz.
Numa semana em que o Porto tinha de vir jogar contra o Benfica, o maior treinador português de todos os tempos, José Maria Pedroto, resumiu a situação que, na sua opinião, levava a que o Benfica fosse quase sempre campeão: no estádio desse clube lisboeta havia sempre “erros” de arbitragem e eram tão flagrantes que o Zé do Boné lhes chamou roubos de catedral.
Estava montado o banzé. O órgão oficial dos encarnados, mais conhecido como jornal A Bola, fez daquelas justas afirmações escândalo nacional colocando-as na primeira página. Apelos foram feitos para que o povo benfiquista exibi-se o seu descontentamento e revolta perante tão “escandalosas” afirmações.
Reza a lenda que o Presidente do FC Porto, Américo de Sá, preocupado com a mais que provável má recepção aos jogadores e sabendo da tremideira que dava a alguns (nunca gostei de um com nome de árvore que dá azeitonas) chamou o chefe de departamento de futebol, Pinto da Costa, e o Pedroto para ver como é que se lidaria com a situação. Aí mesmo o treinador disse-lhe para não se preocupar que quando a equipa saísse para o jogo só se iriam ouvir meia dúzia de assobios.
Chegou o dia do jogo. A Luz rebentava pelas costuras: cento e vinte mil lampiões em fúria esperavam o aquecimento dos azuis e brancos.
Deu-se a táctica mais cedo que o habitual e quando os jogadores, meio assustados com aquele clima, se preparavam para subir ao relvado o Pedroto chama o Freitas e diz-lhe: “ó rapaz, vais sozinho aquecer. Pões-te de frente para o Terceiro Anel e passas o tempo a mostrar-lhes os dedos do meio e bem apontados para os gajos. Ouviste?”
O Freitas, negro de Angola, ficou branco como a cal. É que apesar de ser um daqueles centrais que vêm o espaço entre os pés e o pescoço uma canela só, era um rapaz tímido e meio medroso. Mas o respeitinho é muito bonito e o grande José Maria não era, propriamente, um treinador dialogante. Benzeu-se, despediu-se dos colegas e lá foi o bom do Freitas.
A Luz esteve para desabar. De cada vez que o jogador do Porto levantava o braço havia síncopes entre os adeptos do Benfica. Os assobios eram tantos que os otorrinos alfacinhas não tiveram mãos a medir durante um mês. A pobre da mãe do Freitas, em Cabinda, foi tão insultada que teria que durar 4000 anos para ter feito um décimo das coisas de que a lampionagem a acusava.
Passados vinte minutos entrou o resto da equipa. Nessa altura já a turba estava tão cansada que já não houve grandes reacções: Meia dúzia de assobios afónicos e uns insultos sussurrados.
O Freitas ficou praticamente surdo mas a equipa portou-se bem.
"Caos Calmo" é, sabia-se, Moretti, enquanto actor, exacto e contido - sem angústias cómicas e hilárias. Mas não foi isso que me ficou da película - nem isso nem a cena de sexo (quer dizer, essa ficou mas não vou tratar o assunto a estas horas). O que me ficou mais foi o facto de ser um filme verdadeiramente contemporâneo. Sim, a dado momento, até se fala, imaginem só, na nova obsessão da filharada, os gormitis.
Há que fazer alguma coisa pelo pijama. O pijama tem sido enxovalhado todos os dias na sociedade portuguesa. As pessoas que usam pijama têm medo de o assumir. Andam numa espécie de clandestinidade. É vê-las nos corredores dos escritórios, a cochichar a sua doidivanice, a sua tonteira, a sua extravagância. Quem usa pijama é considerado um totó por uma larga maioria (certamente) que dorme nu ou de cuecas, mesmo numa casa sem aquecedores no pino dos mais enregelados Invernos.
Os que usam pijama são, igualmente, acusados de não ter vida sexual. Um atrevimento. Como se, na hora certa, o cidadão não pudesse ver-se livre das suas calças às bolinhas rosa e revelar-se o maior dos predadores do condomínio. Esta pornografia do sono, que não admite gente antiquada e friorenta, tem levado muito boa gente à depressão e à insónia. É preciso ter atenção a isso. Deve haver chats de pessoas que usam pijamas. Ou blogues. Ou clínicas. Ou então almoços no último domingo de cada mês, em que se tem de falar baixinho, não vá o empregado topar a bizarria e descompor, com duas ou três piadas de algibeira, os apijamados comensais.
Há outras formas de olhar para o assunto. Acabar com esta instituição, assim de um momento para o outro, é tirar um direito às avós: o direito a comprar o belo do pijama para o neto. Ou para o genro. Ou para o marido da porteira. Ou para o ministro da Admnistração Interna. O que é que as senhoras agora vão comprar? Um fio dental? Não tem o mesmo efeito e não dá para embrulhar. Além disso, as lojas de bairro não vendem esse tipo de artigos. "O stock acabou de esgotar", dizem sempre, com a maior das simpatias, os funcionários.
O pijama, além de ser uma bela palavra (todo um programa de conforto, aconchego e até de ternura), é um direito, uma diferença que é preciso reconhecer. Já antecipo as manifestações dos cidadãos que usam pijama. Com tudo (umas setes pessoas) a gritar: “Pijaminhas sim, discriminação não”. Eu vou. Tenho dois pijamas (um azulinho bebé e um aos quadrados) que ainda vou usando quando não tenho ninguém em casa.
Gosto de alcunhas. Sou até daqueles tipos que gostam que o tratem pela alcunha.
Percebo, porém, que há umas quantas pessoas que não apreciam especialmente as suas.
Aquelas clássicas tipo “vidrinhos”, “orelhas” ou “badocha” e que, tipicamente, são dos tempos da escola primária têm uma duração normalmente limitada e, na maioria das vezes, só são lembradas quando muitos anos passados encontramos o cidadão e, não conseguindo nós lembrar o seu nome, são nos rememoriadas pelo próprio. Nada de mais.
As piores são aquelas mais tardias, de liceu ou inicio de faculdade. Essas pegam-se que nem sarna. E quanto mais venenosas, pior.
Imagine o cidadão o meu problema. Sou rapaz de memória limitada e com uma tendência para, repito, gostar de alcunhas.
A idade vai passando, vamos perdendo o contacto com muitas das pessoas com que nos fomos dando e, de repente, a descer o Chiado, encontro o “Baldinho” (diminutivo de baldinho de merda), muito bem arreado de fatinho Rosa & Teixeira acompanhado de um senhor também muito bem posto. Que lhe digo eu? Então ó Balidinho?
E que posso fazer se encontro a minha velha amiga “Macinstosh” (homenageada em função dum acto sexual que muito apreciava e que rimava com o nome de um computador) com os seus três filhos e o seu sisudo marido? Hum?
Não é por mal. Tratá-los pelos nomes do Bilhete de Identidade seria como chamar elefante a um gafanhoto.
Prefiro mil vezes fingir que não os vejo do que fazer aquela típica cena ridícula que é dar um abraço meio forçado e lhes perguntar ao ouvido: “Ó Chichi, como é que te chamas agora?”
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.