Terça-feira, 30 de Dezembro de 2008

crónica de pantufas (em dias de chuva)

Às vezes, o escriba cansa-se de escrever coisas para sempre. Chega de querer ser recordado, amado, forjar frases para facilitar a vida a quem nos queira citar no dia em que morramos. Basta de monólogos para arrebatar plateias por esse mundo fora, fazer-se ao mosh de comentários, passear o glamour geek por hordas de louras histéricas por intelectuais escanzelados. Deixem lá o Philip Roth ser o melhor sozinho. Aqui e ali, o cronista tem direito a vir à porta de pantufas, com a roupa de andar por casa, com a escrita despenteada. Só para a família e vizinhos.

 

Começando a organizar pensamentos estremunhados: ia dizer que é fim de ano, mas não. É o fundo do ano. O mundo anda a baloiçar no lado de baixo dos dias, com demasiadas horas nocturnas; chuva e vento e frio; resignações e projectos a rodar na chávena de chá à espera de dia melhor para começar a pôr em prática.

 

Tudo em volta – das notícias aos telefonemas pessoais – confirma uma segunda ideia tosca: o Verão não é a silly season. Ao menos, há tempo para ler. O dueto Natal-Réveillon é que é the real thing. Programação imbecil, jornais despidos, lojas e serviços fechados, trânsito somente ao redor dos shoppings, lado nenhum para onde fugir, conversas monotemáticas, espirais de rituais repetidos por milhões de pessoas como tropas de zombies aparentemente bem intencionados.

 

Terceira questão, posta na mesa, ao lado da taça dos amendoins: raisparta os balanços do ano. É de mim ou aquilo não faz sentido? Não sabemos fazer história sobre corpos ainda quentes. Há rastos perdidos em Janeiro e nomes da semana passada. Elegem-se discos que ninguém voltará a ouvir e deixam-se de fora filmes que, vai na volta, permanecerão. Organizam-se tops de factos e figuras como se Barack Obama tivesse saltado ligeiramente mais que Nelson Évora ou Josef Fritzl perdido por poucos para Cristiano Ronaldo na corrida para melhor do mundo da France Football.

 

Outras coisas dispersas: a) o Pedro e o João andam a escrever cada vez melhor. A última crónica do João é a arma fumegante que incrimina um equilibrista de pensamento tão bom que até irrita; b) Procuro workshops subordinados ao tema: como acender uma lareira sem recurso a gasolina (módulo 1); como mantê-la acesa e vibrante depois de virar costas  (módulo 2). E c) o que me lixa é que, a seguir, ainda vem o carnaval.

publicado por Alexandre Borges às 00:49
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Sábado, 27 de Dezembro de 2008

Eu gosto é de ser bem alimentada

Passei um Natal agradável, obrigado. Reduzi a habitual quantidade de doçaria ingerida de 'absurdo' para um mais aceitável 'exagero irracional', disse muitas vezes 'Pois' e 'Sim, claro' quando me perguntaram se as minhas sobrinhas não estavam muito lindinhas, treinei um sorriso doce para o momento de receber prendas inanes e quando recebi prendas inanes sorri docemente e agradeci. E aborreci-me muito.

 

Para fugir ao tédio pus-me a ler o blog do Mexia, onde encontrei um post curioso.  Escreve o Pedro, a 22 deste mês, que uma moça disse a um amigo: "Gosto de ser bem fodida". O amigo ficou excitado, mas isso pouco importa: um homem excita-se até com o vento a soprar nos canaviais. O interessante está na interpretação do Pedro: "tirando o vocábulo, ela não disse nada do outro mundo. Toda a gente gosta de foder ou ser fodida, de preferência bem." O Pedro tem razão quando escreve que ela não disse nada do outro mundo tirando o palavrão - mas é o palavrão que faz toda a diferença, não a afirmação contida na frase. Eu explico.

 

Imaginemos que a senhora tinha tido: "Gosto que saibam fazer amor comigo" e posteriormente tinha procedido a uma longa e detalhada explicitação dos movimentos de anca, língua e dedos que o aspirante a amante teria de executar para a deixar feliz. Ainda seria uma afirmação de si enquanto ser desejante (tipa que fode) e também desejável (tipa fodível), mas a frase teria caído no esquecimento e o amigo do Mexia, em vez de ficar excitado, ter-se-ia entediado. Porque a frase teria sido expurgada do seu factor entesoante, que é o uso do calão. O calão serve para reconduzir ao pornográfico o que antes as mentes púdicas achavam ser pornográfico. Serve para tornar ainda mais afirmativa uma afirmação de si.

 

Claro que isto é tudo treta, porque qualquer ser minimamente adulto sabe que qualquer ser minimamente adulto e saudável gosta de foder e ser fodido, "de preferência bem", como o Pedro refere (não sei onde o descobriu, deve ter lido). Além disso, a frase é hoje repetida ad nauseum por qualquer fêmea aspirante a liberal e dona e senhora do seu nariz (também se fazem coisas interessantes com o nariz, e não estou a falar de drogas): toda  a santa cachopa já a disse pelo menos uma vez a um qualquer tenrinho deslumbrado com o potencial entesoante do calão. Ora isto é uma constatação do óbvio disfarçada de diferença, pelo que a proposição deixa de ser uma irreprimível afirmação de vontade para ser roleplaying, o que faz da mocinha uma poseur.

 

Se a cachopa tivesse dito: 'Gosto que ejaculem na minha cara enquanto trauteiam A Cavalgada das Valquírias' ou 'Aprecio sobremaneira que me assentem com cintos de couro no lombo enquanto me descrevem a vitória de Kasparov sobre Karpov em 1983 com aquela toma do peão pelo bispo à traição', isto seria notícia. Assim é apenas mais uma repetição sonsa da mesma história, com os mesmos capítulos e final conhecido, apenas uma nota de rodapé num banal tema de capa da revista Happy. 

 

O Pedro escreve "Hoje em dia uma mulher perdoa tudo a um homem, até violências e traições, mas não perdoa ser mal fodida", o que é um manifesto exagero: toda a gente pode perdoar uma certa dose de violência; uma certa dose de traição; e igualmente uma certa dose de má foda como se perdoa uma certa dose de más refeições ou de conversas aborrecidas ou de almoços de família neuróticos ou de roupa desarrumada. O que não se perdoa é a absolutização da violência, da traição ou da má foda.

 

Quando o Pedro acaba o post a exclamar "Abençoadas" às senhoras que gostam de ser bem fodidas mas não se importam de ser maltratadas ou traídas está apenas a descrever um imaginário feminino que lhe interessa para confirmar a sua imagem de si. Mas está a fazer um mau serviço às mulheres (como aliás ele certamente confirmará), porque está a descrevê-las como seres que procuram a autonomia unicamente pela foda - pior: pela foda que recebem e não pela que dão. E que por ela são capazes de se submeter a tudo, inclusive à violência - da mesma forma que antes o fariam (suponhamos) pela segurança.

 

E isto reduz a autonomia da mulher a uma caricatura. Porque raio a autonomia tem de passar pela foda, porque raio se "afirma" a foda? Antes a sexualidade não passava pelo prazer feminino? Tirando certas excepções (a corte japonesa no século XI parece exemplo demasiado rebuscado), não, não passava. Mas também é certo que antes eram as mulheres que cozinhavam; que passavam a ferro; e que se ocupavam da educação das criancinhas. E é tendo em conta todas essas anteriores manifestações da primeva submissão feminina, que rogo pelo dia em que ouça uma mulher a dizer: "Eu gosto é de ser bem alimentada", ou "Homem que me queira tem de me passar bem a ferro as saias plissadas". Isto seria uma afirmação de individualidade original. Até lá, é só folclore.

publicado por João Bonifácio às 18:11
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Quarta-feira, 24 de Dezembro de 2008

Um sinusítico Natal

publicado por Pedro Marques Lopes às 19:40
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Terça-feira, 23 de Dezembro de 2008

Porto

Ia começar esta croniqueta dizendo que apesar de ter nascido no Porto e ter passado lá uma pequena parte da minha adolescência, poucas coisas me tinham  marcado e que me considero quase um original alfacinha.
Começa este cidadão a alinhavar as ideias para que a coisa seja mais ou menos legível e acontece-lhe o mesmo de sempre: o que parecia ir para um lado acaba sempre por ir para o outro.

Apercebo-me do provincianismo da coisa, nada, aliás, que o leitor não descobrisse nas primeiras linhas. Está bem. Vivo desde os cinco anos na cidade de Lisboa com umas intermitências pouco significativas, tenho dois ou três amigos no Porto, vejo-me em palpos de aranha para ir da Rua da Restauração para a Rua Santo Ildefonso, não gosto de Super Bock, sofro ataques de asma cada vez que passo a ponte da Arrábida e, last but not the least, estou sempre a dizer mal da cidade.

As tripas ou as francesinhas não contam – gosto tanto de tripas ou francesinhas como de sopa de tomate com carne frita à moda de Fronteira -, o FC Porto também não. O meu mais antigo, vivido e eterno amor não é exclusivo dos tripeiros e, com pena minha, há um clube da segunda circular – só de me lembrar do nome fico agoniado – que tem quase tantos adeptos no Porto como em Lisboa.
O sotaque também não é para aqui chamado. Isso tem a ver com a minha fraca personalidade: dois diazitos em Setúbal e já digo que vou à Tróia com um assento tão grande nos erres que até a minha garganta fica irritada ora, por maioria de razão, basta meia hora de Porto para que os vês desapareçam da minha fonética.

Vou deixar de lado o arrepio que sempre sinto quando passo a ponte e olho para a Foz do Douro, a mesma angustia ansiosa de um inevitável pecado que o ar displicente das encostas ou o cinzento mortal da cidade me provoca. Também não será só pelos cafés. Aqueles espaços de tectos altos e mesas mancas, de espelhos já foscos com empregados de mesa com bandejas redondas velhas e rombas.

Para mim o Porto é a expressão: “onde é que paras?”. É aqui que a cidade deixa de ser  só britânica e burguesa para ser só o Porto, o meu Porto.
Mais do que se querer saber onde é que se vai beber café ou beber uns finos, quer-se saber qual o espaço onde dado cidadão se movimenta, quem são os seus amigos, qual o seu círculo, os seus interesses, no fundo, quem é o tipo que temos à nossa frente.
Nada a ver com a pergunta “em que é que trabalhas?”, frase de apresentação tipicamente anglo saxónica, e que reduz o individuo à sua função laboral, como se o trabalho consumisse o homem e tudo o resto fosse consequência da tarefa. 

“Um cimbalino, faz favor, Sr João” 

publicado por Pedro Marques Lopes às 22:42
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a barba do herói por fazer

Há uma relação intrínseca entre o boémio e a sua barba. O boémio usa barba de três dias. Até aí, isto é, até à septuagésima-primeira hora dessas setenta e duas, é considerado barba feita. Mesmo que dê para arear panelas, acender fósforos, lixar caixilhos em criptoméria com ela. Acima dos três dias, sobe-se de nível: de boémio passa-se a professor Fernando Carvalho Rodrigues, Pai Natal, roady dos ZZ Top. Por esta ordem.

 

O boémio não faz isto por estilo, querer dar um aspecto negligé, imitar o Mourinho. Ainda o Special One dava aulas de educação física na C+S do Portinho da Arrábida, já ele usava aquele sombreado capilar com a mesma regularidade dum nariz, duns olhos ou duma boca. Fá-lo porque só uma a cada três manhãs salta da cama em tempo útil. Até lá, pode ter o patrão a ameaçá-lo de despedimento, a namorada a gritar que o deixa se lhe continuar a provocar aquela irritação de pele, a mãe a telefonar para perguntar se tem dado uso à gillette mach 3 que a tia Natália ofereceu pelo Natal em plena reunião de sócios da empresa. Ele não sucumbe.

 

A barbinha – diminutivo, tenha-se presente, muito másculo – diz com as olheiras, o cabelo desalinhado, o feitio refilão, revolucionário com a Segurança Social em dia, a inócua discordância com a normalidade. E é como um par de botas da tropa, as calças de ganga, um casaco de cabedal, uma edição de bolso do Bukowski: é parte da armadura urbana dentro da qual se esconde a vulnerabilidade do desencontrado.

 

E há mais. O boémio considera uma franca paneleirice o negócio em torno deste assunto. Antigamente, havia as gillettes com lâmina única, com um corte ao centro que se encaixava no cabo, um after-shave Old Spice que ardesse ainda pior que cheirava e uns lápis manhosos que se espetavam nos cortes e duravam uma vida. Depois e de súbito, vieram as lâmina-gémeas, as três lâminas flexíveis que se adaptavam ao rosto, as cinco daquela que, agora, anunciam o Henry, o Federer e o Tiger Woods. As brauns e as philishaves, os hidratantes, os esfoliantes, os cremes para antes e depois. O tanas. O homem que é homem – e o boémio é um – só quer fazer a barba, não ficar com a cara mais macia que o rabinho dum bebé. E quer viajar sem pagar excesso de bagagem e empenhar menos que o PIB de Andorra em despesas de higiene mensais. E, sobretudo, ele reteve a informação fundamental: amanhã, a barba vai crescer outra vez; portanto, para quê ter todo o arsenal dum samurai de roda dela?

 

A barba por fazer é, finalmente, a aproximação possível do boémio ao herói de aventuras clássico. Como poderia ele chegar a convencer uma mulher de ter qualquer coisa de rebelde sem causa, de Indiana Jones dos pequeninos, se andasse com a cara no lastimável estado dum promissor bancário, dum bem sucedido corrector da bolsa que arrisca diariamente a vida num novíssimo jogo da playstation?

 

[Publicado, algures no tempo, na extinta Atlântico.]

publicado por Alexandre Borges às 12:40
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Segunda-feira, 22 de Dezembro de 2008

Soufflé de peixe em concha de vieira

 

Se o leitor pesquisar o Google imagens com as palavras "conchas de vieira", o que obtém são imagens de conchas de um molusco lamelibrânquio acéfalo, a vieira. Mas se juntar "soufflé" a estas palavras, as imagens de vieiras são substituídas por fotogramas  de Jean Paul Belmondo, em À Bout de Souffle. Também uma camisa-de-forças cria condições para associações de ideias inesperadas. A imobilidade do corpo estimula o cérebro e os braços cruzados são a verdadeira pose de pensador - o que Rodin esculpiu foi um tipo com enxaquecas.

 

A psico-somatização é a manifestação involuntária da alma no corpo. Deixando de haver corpo, como sucede quando se está numa camisa-de-forças, o que o homem tenta é a manifestação voluntária do corpo na alma, isto é, o delírio controlado. Sei por vizinhos de quarto mais experientes que esta técnica permite induzir experiências extra-corpóreas em vida e um deles contou-me que já conseguiu ir comprar cigarros sem sair da cama - o problema depois foi trazer o corpo de volta. Tudo isto me soa algo inverosímil, devo confessar. O meu delírio ainda vai pouco além de tentar controlar as emoções com pensamentos, algo não muito diferente de retardar o orgasmo com imagens anti-climáticas - a propósito, obrigado, Professor Doutor Cavaco Silva. 

 

Esta nova rotina trouxe-me à lembrança a primeira vez que utilizei a técnica de evocar pensamentos para induzir estados de espírito. Era criança e havia já passado pelo trauma que é um jantar de soufflé de peixe em concha de vieira. A minha primeira reacção foi encharcar-me em Sugos de hortelã-pimenta para esquecer aquela refeição e só dias depois, perante outra refeição pouco apetecível, percebi que o soufflé de peixe era um magnífico modulador de sensações. Evocar o soufflé permitia-me relativizar uma má refeição. Nada era pior do que o soufflé de peixe em concha de vieira. Amadurecer resumiu-se a partir de então a encontrar o equivalente ao soufflé para outros domínios: o local de férias mais detestado, a peça de roupa que mais me custou vestir, o colega de escola mais irritante, a namorada menos estimulante. O que temos nesta legitimação empirista de um arquétipo negativo é uma dupla violação do platonismo, mas se a ideia da namorada-soufflé não me deu o grande amor da minha vida, permitiu-me viver com mais amor. 

 

Aqui na Suiça vou-me esforçando por aperfeiçoar esta técnica. Dizem-me que com dois traumas e um pensamento arrebatador se consegue gerar toda a gama de sensações - inclusive corpóreas - próprias da existência. Dizem-me que preciso apenas de encontrar os meus pensamentos primários - o vermelho, o azul e o amarelo das memórias - e que então basta aprender a doseá-los. Há nesta ideia de reduzir a memória a três pensamentos algo de extremamente perturbador. Nomeadamente porque um deles terá de ser, por  mero direito de primazia, o soufflé de peixe em concha de vieira. Goodbye, gravitas, goodbye...

 

 

publicado por Homem do pullover amarelo às 09:27
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Domingo, 21 de Dezembro de 2008

Perigo: felicidade

 

Não sei se vos acontece, estes dias em que quase acordamos felizes. Sem razão aparente, a paixão não é para aqui chamada, ou sequer a antecipação de algo ou alguém que desejamos muito. Assim, felizes à bruta, fora de moda e ao primeiro bater de coração, como se tivéssemos tomado um café duplo durante o sono e despertássemos já preparados para o mundo.
 
Não sei se já vos aconteceu, leitores, este sorriso estúpido enquanto se lava os dentes, esta vontade de sair e fazer coisas menores, pintar melhor o tecto da Capela Sistina, emendar umas frases menos conseguidas de Beckett, de caminho acabar com a fome e a pobreza no planeta, assim tipo miss universo com uma missão. E o motivo permanece obscuro, porque a vida é a mesma, as chatices são as mesmas, a imperfeição a mesmíssima, o absurdo de se morrer ainda maior.
 
E sai-se para a rua imune ao que é feio, e todas as mulheres são lindas e merecedoras do nosso amor, queremos mesmo a mulher que passa como no poema de Vinicius, «sete casamentos para escrever o Soneto da Fidelidade» como escreveu uma amiga, essa sim linda e talentosa. E não vemos a tristeza – é impossível, isso da tristeza – e o fado e a melancolia e os Joy Division são nestes dias peças de outro puzzle de um deus menor e chato como sei lá.
 
Estes dias raros para mim, em que nem sequer lembro que é Natal – como homem banal que sou, deprimo-me no Natal - , e sorrio francamente com as sugestões de presentes de kits crioestaminais («Já viste o que a tua mãe nos deu, amor? Um kit crioestaminal, já podemos tirar coisas do cordão do bebé») ou aquela ecosfera que é uma bola de vidro com «bactérias, camarões e algas» lá dentro, destinado a reproduzir um ecossistema, quem nunca pensou em ter uma coisa destas?
 
A felicidade ou a sua proximidade é território estranho para mim, leitor, e que chego por vezes a evitar. Mas quando surge assim, à socapa, misteriosa e avassaladora lembro-me do padre Brown de Chesterton que dizia que o mais incrível que há nos milagres é eles acontecerem. E eis-me a ouvir outra vez o Come Dance With Me! do Sinatra e a escrever pastiches literários mal-amanhados de stream of conscience , sabendo que amanhã tudo vai voltar a ser o que sempre foi e a implorar por favor por favor tirem-me daqui que posso vir a gostar.
publicado por Nuno Miguel Guedes às 17:29
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Sábado, 20 de Dezembro de 2008

Portugal é o Bruno Aleixo

A primeira vez que me falaram do Bruno Aleixo usaram o termo "génio" de forma tão desbragada para o qualificar que automaticamente desmereci o bicho. Não uso o termo "bicho" de forma gratuita: fui à procura da figura no Youtube e dei com um bonequinho saído da Guerra das Estrelas que debitava conselhos sem sentido. Não fiquei propriamente fascinado, mas retive um sotaque geograficamente localizável entre a Mealhada e Viseu que me pareceu louvável, porque sou muito boa pessoa e amo o povo. Acresce dizer que tenho a certeza que estas coordenadas estão certas, particularmente porque nunca estive nem na Mealhada nem em Viseu.

 

Num zapping nocturno descobri o programa do Aleixo na Sic-Radical. O programa do Aleixo permitiu-me praticar o meu desporto preferido: não gostar. Tento sempre não gostar de tudo o que toda a gente gosta, e esforcei-me muito por não gostar do Aleixo. Infelizmente, o programa é brilhante, o que me leva a odiar o Aleixo.

 

Desde que o tinha visto no Youtube o Bruno Aleixo mudou: já não é um bonequinho da Guerra das Estrelas - agora é um cãozinho e tem uma mantinha. A seu lado está um busto, denominado Busto. O Bruno Aleixo é um ser lamentável. Sabem aqueles tipos que são iguais à avó? Pois bem: esse é o Bruno Aleixo. Um tipo (um cão) que apenas abre a boca para rezingar, mandar vir, reclamar e mostrar, por argumentos insondavelmente insanos, que todos os outros são idiotas. Eu amo o Bruno Aleixo.

 

O  imaginário do Aleixo apenas comporta conversas sobre os méritos das pegas em  baquelite ou as notícias do Diário de Coimbra. Tudo o que o Aleixo diz e faz é apenas e só em mérito próprio. O Aleixo é provinciano, mesquinho, rebarbado, inculto, machista, fanfarrão e tem sempre de ganhar. O Aleixo é a única pessoa que eu gosto em Portugal. É alguém que oferece maçãs da sua macieira, desde que as apanhem do chão. Alguém que oferece uma arca frigorífica a um espectador do programa, em particular porque a arca está estragada. Amável, avisa para levarem uma vanete porque aquilo ainda é grande. O Aleixo é um poço de amor.

 

Não sei se já alguém disse isto, mas o Bruno Aleixo é o Larry David português. Conversa sobre nada e implica com tudo. O seu único objectivo é conseguir o que quer, mesmo que o que queira seja ganhar uma discussão insignificante ou provar que é o maior. Que o Larry David português seja um cão que parece uma velha a falar só pode fazer todo o sentido. Estou quase a ir mais longe e a dizer que o Aleixo é a pátria toda mas ainda me aparecem uns tipos do PNR a dar-me porrada. Mas eu, pelo Aleixo, até era capaz disso.

publicado por João Bonifácio às 00:47
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Sexta-feira, 19 de Dezembro de 2008

as palavras

 As palavras são. Mas também dizem. Sobretudo aquilo que queremos aferir delas, na nossa interpretação muito pessoal, sobretudo quando refluxos de memória vêm ao goto, sobretudo quando vêm polvilhadas de infância e ou puberdade, sobretudo já parava com esta repetição de uma palavra em forma de casaco que aqui serve outros propósitos que não o de agasalhar.

 

Vem esta curta prosa a propósito do lançamento do último livro do Mexia, ali ao Incógnito, faz hoje uma semana. No dito - lançamento - veio à baila a palavra Gina, enquanto objecto significante de revista e de felicidade às mãos-cheias. E quem pertence a esta geração, bem como a outras imediatamente anteriores, nunca mais conseguiu isolar outras Ginas daquela em forma de revista, besuntada a papel couché e fotos de fazer inveja a uma grande angular. Conheço até uma muito querida (Gina), que explora um estabelecimento comercial no ramo da hotelaria, e que muito me custa enredar nestes baraços da memória selectiva.

 

E enquanto o Mexia falava na Gina, e agitava o canhenho editado pela Tinta da China com direito a Scorpions na fronha, eu pensava noutro vocábulo que vai não volta me assola a cabeça: pachacha. Palavra rude, significado truculento, suficiente para gerar um casus belli de mal-entendidos aqui na bloga. Sucede que eu não vejo a pachacha assim (abrenúncio) até porque tão desditosa laracha servia para designar um indivíduo que ganhou a alcunha num dia em que disputávamos uma partida de futebol em plena rua e uma rabanada de vento o levou a morder o pó, que é como quem diz, o alcatrão. O desgraçado chamava-se Carlos portanto havia muita gente que o tratava por "pachacha" com notório alívio. Era magricelas e fracote e logo algum génio do quase subúrbio que é a minha zona de criação o apodou com referências pouco subits à feminilidade.

 

E assim uma palavra guedelhuda é para mim motivo de sorriso e terna lembrança da puberdade em calções e ténis rotos da Fute, comprados no Guimarães da estrada de Benfica. Quanto a ordinarices ainda não estamos conversados, eu prometo.

 

publicado por Pedro Vieira às 18:58
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Quinta-feira, 18 de Dezembro de 2008

Bruta ternura

 


Tento desenvolver aqui no spa sinusítico um pensamento sublinhado recentemente pela dona Bina no bairro melancómico - onde, para quem não sabe, habito num T-2 com vista para o Lidl. A catedrática da junta arriscou um pensamento definitivo: “Não se devem usar pontos de exclamação em público mas devem usar-se muitos em privado”. Fiquei a pensar. Mas o que é que a senhora quis dizer com isto? É um sentimento de pudor que a anima? Um prurido, uma mania, uma panca associada à medicação?  Pensei, reflecti, consultei a wikipédia, troquei dois dedos de conversa com o ucraniano que me pede um pacote de leite magro todas as semanas (não dou porque sou má pessoa) e cheguei à conclusão que, de facto, a senhora tem razão. Tem, tem.


Um ponto de exclamação mal colocado numa frase é uma deselegância indesculpável. Funciona como uma espécie de arroto verbal. O texto até pode estar “bem escrito” (ah, toda a vacuidade do mundo numa expressão barata), o artista até pode ser um bom artista, essas coisas todas, mas se coloca um ponto de exclamação onde não deve ser colocado estraga tudo (tudinho mesmo). Numa sala de decoração impecável é o dalmata de louça. O ponto de exclamação tem o efeito de uma bomba terrorista. A festa pode  estar a correr bem, com um ambiente agradavelzito (apesar da música tenuemente new age), mas escusado era alguém ter feito rebentar o quarteirão todo com um explosivo colocado na marquise. É isso o ponto de exclamação.

 

Há muito boa gente que acha que deve terminar uma frase com um ponto de exclamação. Acontece normalmente naquelas crónicas mais indignadas e furiosas. O tom vai em crescendo de parágrafo em parágrafo, o escriba entusiasma-se, qual Jirinovsky do verbo fácil, e, pimba, termina o escrito não com um, não com dois, mas com três pontos de exclamação. Assim: !!!. Do género “toma lá que já almoçaste”. Convém, se calhar, recordar o óbvio: não é ponto de exclamação que incendeia a frase de fulgor e força. A frase, em si, é que deve ser musculada.

Pelo contrário, na vidinha privada de cada um (SMS's, emails, bilhetinhos, cada vez mais urgentes à papelada dos dias) faz sentido, parece-me, usar a bomba. A bomba afectiva neste caso. É como dar um pancadão nas costas de um companheiro de pândegas e regabofes – daqueles que fazem curvar a cabeça da vítima até ao excremento do pitbull e rir todo o grupelho da rua. Reforça a cúmplicidade. Com os amigos não devemos ser elegantezinhos. Devemos ser generosos, patéticos e ternurentos. O "grande abraço" é o ponto de exclamação dos telefonemas entre amigos. Quando no final de um telefonema entre pessoas próximas alguém responde a um "grande abraço" com um "adeus, até amanhã" isso é motivo suficiente para ofender quem está do outro lado. É bom que assim seja. Há que recuperar a "ofensa" e as "florzinhas de estufa". Fazem falta a este ambiente climatizado de repartição nórdica. 

 

Um ponto de exclamação em cada esquina - lugares onde se cruzam os amigos e os companheiraços. É disso que este país anda a precisar.

publicado por Nuno Costa Santos às 11:15
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