À conta de um tio fui, durante quatro ou cinco anos, benfiquista. Até que numa noite de 1979 vi pela primeira vez um jogo do Benfica, numa (rara à época) transmissão televisiva. Os encarnados perderam, mas para mim não se tratou apenas de uma derrota, antes da falência do imaginário em que a minha infância se edificara.
O tio dissera "O Benfica vence sempre" a minha vida inteira - e aquela derrota revelava que o tio mentia. E se o tio mentia, também os outros podiam mentir. Aos quatro anos, ser enganado era o equivalente moral a perder (ou a ter de comer peixe). A minha infância estava arruinada.
O maior adversário do Benfica que eu conhecia era a minha avó. Portista ferrenha, desligava o rádio sempre que havia relato dos vermelhos. Como gostava da velhota tornei-me do Porto - e o Porto, inexplicavelmente, desatou a ganhar.
Aquilo que começou por birra tornou-se maior. Em 85, o Porto foi eliminado da Taça das Taças por um obscuro clube inglês, o Wrexham. Quando, antecipando a derrota, desliguei o rádio, o meu pai ligou-o de novo e obrigou-me a ouvir o relato até ao fim. Eu queria ser pós-moderno, ter uma relação aberta com o clube, ele forçou-me a um casamento: "Se és adepto para a vitória, também tens de o ser para a derrota".
Ouvi o resto do relato em luta contra as lágrimas, deitei-me ciente do que teria de enfrentar no dia seguinte, na escola: na terrinha não havia mais de três, quatro portistas e o resto eram animalescos adeptos de clubes inferiores; esperava-me uma humilhação.
Fim-de-semana após fim-de-semana, o Porto ganhava e à segunda-feira hordas de mouros apontavam-me dedos acusadores. O argumento de cada um era o mesmo do dos outros: "O meu pai conhece um senhor que conhece outro senhor que sabe que isto é tudo corrupção". Mas se o meu tio me tinha mentido, os pais deles também lhes mentiriam, de certeza.
Em 87 saí a meio da aula de preparação para a Comunhão Solene, com uma desculpa esfarrapada, para ver a final da Taça dos Campeõesa. Estava convencido que Cristo, a ter voltado à Terra, era canhoto e chamava-se Futre.
A raiva que eu tivesse ao Benfica desapareceu nesse dia, porque ganhar a sério era muito melhor que ver o Benfica perder 7 a 1 com o Sporting. A partir daí comecei a desejar que o Benfica ganhasse nas competições europeias. Vibrei com o 3-1 ao Arsenal. Com o 4 a 4 em Leverkusen. Com a bicicleta do Micolli em Anfield Road. Fiquei triste pelo penalty falhado do Veloso.
Quando na quinta o Benfica começou a levar golo atrás de golo do Olympiakos, lembrei-me daquela noite de 79. Depois aconteceu algo de extraordinário: Quique Flores, o treinador, não arranjou bodes expiatórios. Disse que derrotas daquelas não acontecem sem razão. E com uma hombridade tremenda, pediu desculpas aos adeptos.
Talvez se há 29 anos tivesse havido um Flores eu ainda fosse benfiquista. Talvez eu não tivesse descoberto que os adultos mamipulam os miúdos apenas por medo que eles sejam diferentes de si. Não vale a pena recordar mais a mentira do meu tio - cresci, observei o mundo, tornei-me adulto, e perdoei-o. Na quinta-feira à noite, para ser mais exacto.
estamos de volta, os sinusites, isto até dava uma boa malha hip hop se uns blacks da margem sul não nos tivessem usurpado o tonitruante e orelhudo verso "adivinha quem voltou". adiante, que o tempo escasseia e não quero escorregar na minha primeira sexta-feira de escriba, e não, não estou de saída para a amesquita embora lá se comam belíssimas chamuças no dia santo dos mullahs. vou trabalhar (cáspite) mas antes deixo uma reflexão.
há dias a bárbara reis do público/ipsilon comprovava a mudança social que portugal vai vivendo com a salada de frutas em que se tornou o povo que vai à pastelaria versailles. as velhotas de cabelo armado já não são a espécie predominante, diz ela. pois eu acho que falta mais, o cosmopolitismo e democracia chá das cinco não me chega, e explico-me.
as coisas terão realmente mudado quando uma questão simples como a identidade dos criminosos não for um factor de diferenciação social. veja-se, se tratamos de assaltos a gasolineiras, ourives de província ou bancos respeitáveis (quando estes não se metem com o cds e com os sobreiros) há sempre um toni, um gerson, um cléber, um sandro, um nélson ao barulho. na versão espanhola um el solitario, naquela que é uma tentativa de dar glamour através de uma alcunha que me faz lembrar o david hasselhof.
se tratamos de manigâncias de colarinho branco passamos para suspeitos e derivados identificados pelos nomes de família, o oliveira e costa, o dias loureiro, o nobre guedes, o costa freire. no capítulo alcunhas/diminutivos já nos saiu um zézé beleza (medo). pois bem, este moço que aqui vos abre o coração só descansará quando vir manchetes do 24 horas do género
"mello e sousa parte tudo na repsol e foge com caixa registadora, numa viatura roubada pelo método carjacking na quinta patiño"
ou, em alternativa,
"fábio jorge comprometeu a solvência do banco y com a colaboração de érica solange"
aí sim, teremos cosmopolitismo. e democracia. o 25 de abril já foi há 34 anos, tratem lá disso, pá.
Convalesço na Suiça, caro leitor. Nunca pensei usar este verbo na primeira pessoa. Nunca pensei passar um mês na Suiça. “Convalesço na Suiça” era para mim uma expressão mais inesperada do que “fui ao Mónaco e entranhei duas caganitas da Grace Kelly nas ranhuras das solas Timberland”, uma improvável e anacrónica imagem mas que também explica que me encontre aqui. Porque só na Suiça existe a vocação, o know-how e a reputação suficientes para se fundar e manter uma clínica especializada na cura da fixação escatológica. Como se percebe pela alusão à princesa, ainda não será esta semana que me darão alta. Recuemos uns meses.
A deriva escatológica matou o tirocínio para crítico gastronómico. Foi a mais inoportuna das doenças. Aos olhos de um crítico de restaurantes, um brigadeiro deve ser sobretudo um brigadeiro e na mousse não se pode evocar a manga como quem faz a sublimação do chocolate. O texto da demolha do bacalhau no autoclismo foi um auto-assentamento de espáduas e José Quitério nem chegou a saber que existo. Seguiram-se meses a viver como pária e só um resto de brio profissional evitou que me afundasse no álcool - incapaz de beber como um homem, nunca deixei de cuspir como um escanção - ou na droga - a fixação escatológica é uma manifestação de retenção anal, que me impedia de aceitar meter pelo nariz o que após um voo intercontinental saiu de tripa alheia.
O pullover jaz agora, posto sobre as costas da cadeira e sem cotovelos, e toldam-lhe as mangas, raquíticos braços lembrando. Parece uma muda de pele, vazia de vida. A minha alma passa metade do dia enfiada numa camisa-de-forças. Pensava que todas as almas seriam voláteis como Houdini, capazes de escapar da camisa-de-forças e só voltar ao fim do dia, para que os enfermeiros não desconfiassem, mas a verdade é que a minha alma dá-se bem com o sedentarismo forçado.
Este traje implica alguns ajustamentos. Voltei a ter quem me vestisse de manhã e me tirasse a roupa ao fim do dia. Quem faz dieta tem direito a uma refeição livre por semana, mas eles aqui são uma simpatia e deixam-me jantar sempre de mãos livres. Seguem-se duas horas ao serão, o tempo que tenho para transcrever o que registei no gravador. Os meus textos passaram a ser ditados em voz alta, porque é encamisado que tenho mais ideias. A camisa evita as dispersões do corpo e passo por uma stephen-hawkinização que me dá um acrescento de lucidez. Esse é o efeito principal da camisa-de-forças. Mas a própria camisa, como fonte de metáforas, parece ser inesgotável. O amor, o que é? É o encamisamento a dois. O amor é complicado porque quando um resolve sair deixa uma série de nós adicionais na camisa e o que fica dentro dela desespera. Enfim, de tal camisa sinto-me hoje livre e esta aqui da Suiça chega a ser acolhedora. A meio da tarde dá-me para ir até à janela e fico a comtemplar as montanhas lugar onde Nabokov e a sua mulher viveram 18 anos, o Montreux Palace Hotel. Que estranho modo de vida, isto de estar 18 anos com a mesma mulher.
(cont)
Há dias ofereci uma t-shirt dos Cut Copy ao meu sobrinho Tomás, um rapaz de doze anos. Quis compensá-lo pela tristeza que sentiu por não poder, pela sua escassa idade, ir ao concerto que a banda deu no Lux uma destas quintas. O entusiasmo que sentiu com o grupo australiano (uma mistura improvável e possivelmente perigosa entre os New Order e os Modern Talking) começou numa tarde em que pesquisei no youtube uma data de clips deles - desde "Hearts on Fire" até ao mais antiguinho "Time Stand Still". O Tomás assistiu a tudo de pé, encostado à parede, com o silêncio tímido que o caracteriza. Quando chegou a casa, falou à mãe do grupo. Pediu-lhe para sacar da net as musiquetas do gang (ela naturalmente não sacou porque é uma pessoa responsável). E, desde aí, está transformado num Cutcopymaníaco.
Este episódio fez-me lembrar das pessoas que tiveram importância na minha formação de ouvinte. Sem ter consciência disso, semeei uma influência musical no miúdo. Não quer dizer que vá ouvir Cut Copy a vida toda ou sequer que os Cut Copy valham alguma coisa - na melhor das hipóteses são apenas mais um divertido grupelho para animar bailes pós-modernos. O ponto é que o tipo anotou mentalmente o nome da banda e foi pesquisar. Recordei-me da importância de certos encontros para a formação dos gostos musicais. Lembrei-me das personagens que, a certa altura da minha existência, me fizeram deixar a ganga foleira dos 80´s e entrar definitivamente nos territórios alternativos - ou seja, nos maus caminhos. Ponhamos as coisas desta forma: basicamente saí do Plateau com um pullover em bico da Amarras e entrei no Incógnito já vestido de preto desde a peruca até aos soquetes. E, para franco desgosto das entidades paternas, nunca mais de lá saí.
Uma foi o irmão mais velho de um amigo - que, do meio do Atlântico (São Miguel, Açores), mandava vir batalhões de encomendas de discos da Contraverso e a quem roubávamos discos dos My Bloody Valentine (lembro-me de ter ouvido Ecstasy And Wine e de julgado que havia problemas sérios na gravação). A outra foi um amigo mesmo, que me abriu os ouvidos para o jazz e para Prince e seus derivados - que me mostrou que havia mais mundo para além do catálogo 4AD. Eles foram os meus Harold Bloom sonorosos. Ou, se quiserem, os meus Moita Flores musicais. Sem a sua ajudinha hoje seria mais um dos milhares de ouvintes da RFM - quem sabe até um animador nas madrugadas, com uma lamentável queda para a poesia pirosa e barata.
Ainda hoje deixo-me influenciar em termos sonoros pelos cidadãos com quem me vou cruzando nas esquinas e nos spas. Os discos chegam-me de várias proveniências, algumas delas legais, e muitas partem de sugestões de figuras com quem tomo uma ginginha ou um nespresso (felizmente, sim, não me tenho cruzado com o Marante). Ouve isto, ouve aquilo, já ouviste falar daqueles? E lá vou eu para o meu computador, como o Tomás, fazer as minhas pesquisas internéticas, lamentavelmente sem a ajuda da minha mãe.
Para que me serve o fígado se não posso beber? Ou os brônquios ou sei lá que parte do aparelho respiratório se não aguenta uns cigarritos? E qual é o imbecil dos meus órgãos que não está a cumprir a sua função e me engrossa o sangue? Será possível a um músculo qualquer que abraça, o meu coração (um toque de romantismos quando se fala deste órgão lamecha fica sempre bem), deixar de ser preguiçoso e trabalhar decentemente?
Há aqui uma espécie de greve de zelo que está a destruir o meu sistema produtivo, um complot de várias partes do meu corpo para destruir o meu bem estar. E, vamos lá a ver se nos entendemos: quem define os objectivos da minha existência sou eu. Isto da minha vida não é propriamente uma democracia em que o meu corpo é o parlamento que decide em cada situação o que é bom para mim. Eu dou a suprema honra ao meu corpo de lá habitar e depois: “Eh pá, desculpa lá, mas a partir de agora não há mais vodka para ninguém”, diz a minha espécie de Fenprof biliar. Mas o que é isto? Já chegamos à Madeira ou quê? Será que tenho de reunir uma espécie de concertação corporal para que sejam decididos os copos que posso beber, os pratos que posso comer, as drogas que posso consumir ou se posso fumar?
Nunca ninguém ouviu da minha (lá está) boca dizer que estou a negociar com o meu parceiro, ou sócio, intestino grosso uma evacuação ou que determinada membrana deve assumir certo perfil. Nada disso, esses órgãos são meus e eu não tenho de lhes dar confiança.
Esta mania das negociações é só uma maneira de disfarçar a enorme incompetência que grassa no meu corpo. É bom que estes pedaços de carne, de certeza com um aspecto nojento, percebam qual o papel deles: ajudar à minha alegria e bem-estar. Porque diabo os cidadãos que gostam de ginástica e comida macrobiótica são bem tratados por esses Mários Nogueiras e eu, que as detesto, sou humilhado e ofendido?
E que dizer dos comentários irritantes desses apreciadores de soja liquefeita quando me dizem que vou ter mais saúde e sentir-me melhor se trocar uns percebes e um branco seco por um sumo de cenoura depois de uma hora de body-pump?
Quer dizer, anda um indivíduo a ler Platão, a ver Visconti, a ouvir o Toy para depois um qualquer pâncreas, que salvo melhor informação tem a alma de um gambuzino, me dizer que o body-pump é melhor que um branco seco? É isso que estes tontos querem dizer?
Vamos é ganhar juizinho e toca a trabalhar que aqui o rapaz tem que fazer.
*
O Obama já lá está. O Oliveira e Costa já saiu. O Benfica passou a ganhar jogos. Veio aquela coisa da crise. O Saramago escreveu mais um. A Elsa Raposo e o João Kléber apaixonaram-se. O Tony Carreira e a Popota também. Sim, o mundo mudou. Mas ainda há sinusite por aqui. Divirtam-se. E constipem-se.
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