Por vezes, como agora, acontece o seguinte: um tipo senta-se ao computador, armado em cronista, do alto do seu moleskine, com umas ideiazitas pobres mas honestas alinhavadas nos intervalos dos desafios dos dias, quando o jogo está normalmente empatado; um tipo senta-se, mas o olhar não, continua de pé, levanta-se inquieto e insatisfeito, pouco convencido do talento do seu dono. E vai pousar num livro colocado mais ou menos a 110º do PC (vindo de quem desce). É um livro de - oh destino! - crónicas dispersas do O'Neill, Já Cá Não Está Quem Falou. Nessa altura já é tarde para voltar atrás, já lhe pegou, já o folheia, numa atitude que faz lembrar o jogador do Porto que disse que esteve à beira do abismo mas, MAS, deu um passo em frente. E lê:
«Manuel Bandeira é a mais alta expressão poética do Brasil. Ele diz que não: que é Mário de Andrade. Mário de Andrade diz que não: que é Manuel Bandeira. Mário de Andrade diz bem.»,
isto só para aperitivo, como canapé de cilício. De maneira que vai em frente e lê noutro texto
«O pobre corre atrás da galinha. A galinha, cocori-pescoceando, foge-lhe sobre os dois garfos, sobre as duas baquetas em rajada de baterista. "Vale a pena, vale todas as penas!", silva bronquiticamente o pobre»
Nesse preciso momento o tipo que se sentou preparado para escrever percebe que hoje é inútil, que já nada de bom lhe vai sair sob os dedos que só querem afagar o teclado para expressar as hossanas por saber ler. O leitor diz que quando há O'Neill, o melhor é não escrever nada. O leitor diz bem.
Passo muitas vezes pela porta da Penitenciária de Lisboa à hora da visita. São sempre mulheres que esperam pela abertura da porta. Nem tristes nem contentes, nem envergonhadas nem orgulhosas. Apenas à espera.
Esperam a hora de poder ver o marido, o pai, o namorado, o filho. Ficam ali a olhar para os carros curiosos que passam e, carregadas de sacos, mostram simplesmente o amor que as liga àquelas pessoas imperfeitas que ali estão presas. São apenas mulheres que sabem que cumprem uma parte do seu destino: amar e ser amado.
Os homens andam pelo parque para que ninguém os veja. Correm para a porta e forçam a entrada para não passarem a “vergonha” de estarem ali. Como se tivessem vergonha de mostrar que amam alguém que cometeu uma qualquer falha. Como se o amor fosse uma espécie de doença com que se tem de viver mas que não deixa de ser um defeito.
Só as mulheres sabem o que é amar, nós, homens, somos uns meros amadores.
Crónica para o programa "Boa Noite, Alvim". Imagem e edição de Nuno Gervásio, montagem e pós-produção de Pedro Mouzinho.
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