Pronto, vou dizê-lo: sou um gajo de meia-idade. Diz que é nesta altura da vida que um homem entra numa espécie de crise existencial. Já tem passado e aparentemente ainda lhe resta algum futuro. No meu caso a situação é “ligeiramente” diferente: não sei para que me serve o passado nem sei o que hei-de fazer com o futuro. Vender cenouras, batedeiras, cautelas ou galões de mistura para motorizadas a dois tempos não é propriamente algo que nos eleve à academia de artes e letras sequer do Burundi. E porque é que um tipo que se dedicou ao nobre oficio de comerciante haveria de querer ser reconhecido como um intelectual de elevadíssima estirpe? Porque era isso que eu queria.
Claro está que me esqueci de escrever uns romances, uns livros de poemas. Também não entrei em nenhuma peça ou sequer constei como figurante em nenhum filme de terceira categoria. Não escrevi nenhuma teoria política nem fiz nenhuma observação particularmente genial sobre o significado democrático do consumo de um SG num voo de Caracas para Lisboa.
E é aqui que entra o busílis da história da meia-idade e se demonstra que a verdade verdadeira sobre esta idade estúpida é afinal que existe uma amostra de passado mas não há nenhuma espécie de futuro. Um cidadão tenta escrever um post (já não é nada mau) sobre a qualidade da democracia em Fornos de Algodres e aparece logo um irónico comentador: “oh pázinho, tu sabes é vender restaurador Olex (muito jeitosos e muito em conta, por sinal). Deixa-te de merdas”. Ou então, mandar uma reflexão brilhante sobre o fim do apoio à criação de lagartas para adubo a um qualquer jornal. Primeira pergunta: “então e que outras coisas escreveu?” “Bom, escrever, escrever, só as etiquetas de preço da secção do talho no Feira Nova do Barreiro, serve como CV?”
A um homem de meia-idade resta-lhe apenas uma ambição: ir vivendo. Pensando bem, podia ser pior.
P.S. o meu pedido de desculpas aos milhões de leitores por ter confundido terça-feira com a quinta. Deve ser da idade.
Crónica para "Os Incorrigíveis". Imagem, montagem e pós-produção de Tiago Almeida.
Crónica para o programa "Boa Noite, Alvim". Imagem e edição de Nuno Gervásio, montagem e pós-produção de Pedro Mouzinho.
Interlúdio II
O homem teme o terrorismo. Cela va sans dire. O Homem do pullover amarelo estima a gastronomia acima de quase tudo. Logo, o único texto da blogosfera que lhe dá pesadelos é este opúsculo sobre terrorismo gastronómico. Não há restaurante em que se sinta absolutamente seguro. Pior, não há comida caseira comercializável. Isto não é a apologia da ASAE, o Homem do pullover amarelo tem um desprezo olímpico pela actualidade. O que se passa é muito simples: comida caseira que se vende para fora deixa de o ser, porque o que a define não é o modo como se confecciona, antes a confiança incondicional com que é consumida. Desde que a Emília e a avó Maria se ausentaram, só sobra a comida de sua mãe. Uma confiança superlativa, que transcende até a que tem pelos seus próprios e parcos cozinhados, não por sentir nele uma pulsão de cozinheiro suicida, mas porque, em consciência, não pode excluir um acto de terrorismo por inépcia - a polpa do indicador no picadinho do estrugido - que faça de um dos seus convidados um canibal involuntário.
Há uns dias, no escuro do teatro, sua mãe ofereceu-lhe um rebuçado já aberto, que ele recebeu com os lábios. Num reflexo típico da sua discreta retenção anal, ocorreu-lhe que talvez fosse o último, que ela se apressara a resgatar da boca quando reparou não ter mais na bolsa, para o oferecer ao seu filho, que nem sequer lho pedira. Ele estivera tão distraído e o escuro era tanto que só uma confiança cega o podia guiar na decisão sobre o que fazer: aceitar o rebuçado, acariciá-lo com a língua, prolongar o prazer e estimar a oferenda como se lhe tivessem cedido um cantil no deserto ou, pelo contrário, usar o escuro para simular que chupava o rebuçado, quando na verdade o soltara dos lábios para a palma da mão e o deixara cair, aproveitando o amortecimento acústico da alcatifa e um momento em que, do palco, um Duarte Mendes a fazer de comunista empedernido soltava uma interjeição sonante. Enquanto chupava o rebuçado, com a convexidade de encontro à curvatura do céu-da-boca a desfazer-se num açúcar que se difundia logo no sangue, apercebeu-se que a dúvida não o incomodava, até o divertia, e foi num travelling do último almoço na cozinha de sua mãe, nessa tarde, até à vida intra-uterina e ao cordão umbilical. Excluindo aquele útero e aquelas cozinhas, não se voltou a sentir seguro em lado nenhum e muito menos num restaurante.
O que se passa atrás daquelas portas? O que fizeram as mãos de um ajudante de cozinha imberbe a rebentar de tesão, momentos antes de ele cortar a hortaliça? Isto nem seria terrorismo, é uma inevitabilidade que decorre da exploração das classes desfavorecidas, da sobrecarga horária e do enviesamento para contratar empregadas de mesa com características sexuais secundárias apelativas. Quantas vezes não se comerá salada temperada com mijo por um empregado de mesa irritado? Se o Homem do pullover amarelo nunca mandou um prato para trás, para ser reaquecido, para se assar melhor a carne, para que a comida corresponda à descrição, etc., não foi por falta de vontade, foi por medo. Medo das represálias. Enganam-se aqueles que se sentem numa relação de superioridade hierárquica com o empregado de mesa. Quem domina o fluxo da cadeia trófica domina tudo. E quanto melhor o restaurante, maior a probabilidade de estes episódios acontecerem, porque maior é a arrogância, a inveja e a tentação de tramar as celebridades, poder chegar a casa e soltar a gabalorice: "o Paulo Pires gostou do cotão do meu umbigo." Então os que são malcriados para os maus criados, pobres coitados... Dá-me dó pensar em todos os arrogantes que vejo à mesa. Não quero pensar na sopa de ninho de andorinha com um farrapinho de esperma a boiar, no bife de pimenta que alguém arrasta pelos ladrilhos da cozinha antes de o camuflar num molho espesso, no salmonete que se refresca na água da sanita antes de ser grelhado... e de se puxar o autoclismo. Nos EUA, uma parte substancial do ordenado do empregado de mesa vem da gorjeta, mas a gorjeta não estimula a qualidade do serviço, antes condiciona o cliente, vítima da sua frágil psicologia - ouve-se uma voz "se não pagas bem, vais ficar com a certeza de que te cuspi na sopa; se pagas bem, ficas apenas na dúvida". Não faz sentido, mas nós não fazemos muito sentido.
O povo diz que o que não mata engorda, mas quando o povo começar a ser mais assíduo nos restaurantes vai ter vontade de ser envenenado. Existe uma franqueza estimável no envenenamento. Do terrorismo gastronómico subtil é que nenhum provador nos pode salvar. Nem sequer o sorriso, que é o que nos resta.
Deve um crítico gastronómico ter aspirações na cozinha? Claro que não. O eventual ganho de conhecimentos não compensaria nunca a tendência para se comparar aos cozinheiros que critica e a análise ficaria a perder. Um crítico deve, antes de tudo, resignar-se com a sua condição. Mas coexistem no Homem do pullover amarelo duas pulsões, uma racional e outra passional. É por isso que ele tem agora um louceiro no patamar, atravancando a saída de sua casa e de casa do vizinho. Um louceiro onde guardar frascos de vidro cheios de frutos secos, as massas, o arroz, o açúcar castanho, o grão-de-bico, os dentes de alho e as especiarias, malagueta, louro, oregãos, tudo à vista como uma mercearia de brincar e um derradeiro estímulo para enfim cozinhar. "O senhor procura um louceiro rústico que combine com a mobília da sua casa de campo?", perguntou a antiquária. "Sim, mas a casa é citadina, o louceiro é para combinar comigo". Teria sido uma boa resposta, que lhe ocorreu uma semana depois de ela fazer a pergunta. É sempre assim, a inteligência das pessoas poder-se-ia medir no número de dias que precisariam de ter de avanço sobre a realidade para igualar a inteligência de Vasco Pulido Valente, descontando as previsões políticas do colunista, que geralmente saem furadas. O Homem do Pullover amarelo, por exemplo, está a 3 dias da inteligência de Pulido Valente. Carlos Magno está a 2 dias. Scolari está a 4. Ele não conhece o mobiliário de Pulido Valente, mas duvida que alguma vez um louceiro de nogueira tivesse pernoitado no patamar dele por não entrar pela porta. Em sua defesa, confessa-se vítima da tirania das coisas imaginadas que se materializam. É muito raro. Imagina-se uma mulher e em regra arranja-se a mulher possível, ou então retoca-se o sonho para que o sonho se ajuste à realidade e também sejamos actores de uma bela história de amor. É um truque fácil. Imagina-se um louceiro e não se espera encontrá-lo nos antiquários de São Bento, especula-se que talvez numa qualquer casa de Marvão, talvez... E se o louceiro aparece mesmo no antiquário, no canto mais distante de uma cave imensa atulhada de mobília de maus herdeiros, o Homem do pullover amarelo sente-se marcado pelo destino. Depois logo vê se o móvel cabe na porta, se pode rodar no exíguo hall de entrada e ganhar ângulo para galgar o primeiro lance de escadas, já dentro de casa. As coisas práticas, o planeamento, a compatibilidade, bah... Basta haver vontade. Toda a sua mobília volumosa tem as marcas de tal combate e ele lenhos nos dedos. Fez-se cúmplice de dois homens de mudanças com quem carregou um móvel chinês e no final o entusiasmo foi tal que só pela camaradagem lhe apeteceu ir com eles carregar a mobília de outros clientes. Parece-lhe até que a sua casa é como aquelas armadilhas de abrigo para polvos, em que o animal entra e depois já não pode sair. O móvel chinês só à machadada é que poderá ser posto fora e o louceiro um dia estará na cozinha - é um desejo - para não mais sair. Mas nem tudo se pode armadilhar. O hall de entrada não funciona para os amigos. Os amigos entram para o serão e partem ao fim da noite. Nem funciona com as mulheres. Ele ainda se lembra que, antes de ajustar o sonho à realidade, andava com um entusiasmo de quem tem vontade de perguntar se ela estaria com dias de atraso e depois ouviu, como uma revelação e sentença, "Não, querido. És tão tolinho. Eu até tenho um dia de avanço sobre o Vasco Pulido Valente."
Li isto no Público de ontem. Eric G. Wilson, catedrático de Literatura Inglesa nos EUA, publicou um livro polémico, "Against Happiness: In Praise of Melancholy", em que diz que a América procura, a qualquer preço, fugir da tristeza. EGW defende que a melancolia potencia a criatividade - duvido que a maior parte dos melancólicos raie o génio, mas adiante.
Dentro das "vítimas da felicidade" que Wilson menciona parece-me haver, grosso modo e usando exemplos do autor, diferentes graus: a classe média-baixa que corre para "centros comerciais", usa "livros de auto-ajuda" e frequenta "igrejas e seitas"; a classe média-alta que frequenta "ginásios" e aderiu à moda da "comida saudável"; e as classes altas que encerram "a vida dentro de condomínios fechados".
Não sei dos EUA, mas cá uma espécie de sub-grupo merece observação. São bandeiras, não da felicidade, mas do eterno bem estar consigo mesmos. Nunca têm dúvidas, sabem que camisas usar, conhecem os vinhos certos, os restaurantes que é "obrigatório" frequentar. E falam muito das festas em que "estava toda a gente".
Estão de acordo com a sua época, fazem da zona cinzenta de qualquer questão moral um imenso arco-íris. Não têm propriamente ideologia, antes um modo de vida que para eles é superior e o único aceitável - o que não deixa de ser curioso em profissionais da extrema relativização. É gente que não hesita: faz. Interessa-lhes o agora e o amanhã será o dia da vitória - para eles não há passado: o que fizeram, fizeram sem culpa, porque são auto-proclamados transgressores. E a transgressão não é bem transgressão, é um código de comunicação entre a espécie. Unir o hedonismo à indiferença aos restantes humanos é para eles um imperativo estético.
Pouco me importa se transgrediram ou alcançaram o que quer que seja. Sei que têm uma admirável incapacidade em mostrar dúvida, medo, auto-reflexão. E sei que não é o pudor que os mantém calados sobre o que lhes é íntimo. É que, na realidade, são incapazes de não obedecer à risca (e ao risco) as regras da sua pequena comunidade. Na realidade, são eles as verdadeiras vítimas. E inspiram-me pena.
Aos domingos não me apetece nada. Costumo atirar moral aos pombos, observar a hipocrisia do tempo talhada nas estátuas, admirar o arco do braço de um homem à volta dos ombros de uma mulher no jardim da Estrela.
Há domingos diferentes, no entanto. Em que me apetecem coisas. Coisas pequenas. Às vezes apetece-me "hurry home to you/
put on a slow, dumb show for you".
Uma deputada equatoriana apresentou uma proposta de lei para obrigar os homens a proporcionar orgasmos às mulheres. A notícia é omissa no que diz respeito aos orgasmos masculinos.
Duas coisas ficam claras: a senhora ou não gosta de sexo ou tem uma vida sexual muito infeliz e, claramente, ainda não percebeu que nós, homens, nada temos a ver com o orgasmo feminino (é bom que se diga também que as mulheres também não são tidas nem achadas nos nosso orgasmos) mas isso fica para outra altura.
O orgasmo é tão necessário ao sexo como um diabo vermelho no meio dos super dragões. O dito só é imprescindível em duas situações: se não gostamos do parceiro ou parceira ou se queremos procriar e, mesmo, neste caso a ciência já veio em nosso auxilio.
Vamos lá separar bem as coisas. O sexo tem a ver com carícias, com entrega, com carinho, com vontadinha, intimidade, com uma necessidade absoluta de proximidade. Tocar, apalpar, beijar, acariciar, são consequência dessa vontade. Um desejo violento que aquilo dure para sempre. Que o estarmos um dentro do outro seja algo de eterno.
Como é que acaba esse momento único? Com, claro está, o orgasmo. É assim como uma espécie de metáfora do jogo: um tipo diverte-se com o jogo e depois ganha. E então? É isto? Estava tudo delicioso, divertido, vivo e quando estávamos mesmo a gostar, acabou. Vamos à casa de banho, fumamos um cigarro, dizemos umas palavras simpáticas, enfim, acabou o que era bom. O que é que aconteceu? O orgasmo.
O caso muda de figura se tivermos uma aproximação desportiva ao sexo ou se tivermos a matar a conhecida e pouco respeitada (não por mim que tenho uma profunda consideração pela referida) “fomeca”. Aí o grande objectivo é mesmo o orgasmo. É como ir ao ginásio: no fundo estamos mortos por ir embora dali mas sabemos que aquilo leva o seu tempo. Damos um suspirinho ou um berro lancinante depois da ultima abdominal como o fazemos quando temos o dito cujo.
Razão tinha o amigo da Emmanuelle: o amor não é o orgasmo, é a erecção.
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