Tenho um amigo cuja relação com as mulheres é parecida com a quem mantém com os estereogramas: bem podem dizer-lhe que, se focar um ponto no infinito, conseguirá ver o que verdadeiramente lá está, que o homem por mais que tente não consegue.
Mira só a superfície, continua sem perceber nada, mas gosta muito do que vê. E isso basta-lhe.
Imaginem que vão pela rua, distraídos a olhar as montras e dão um encontrão num pacato e parado cidadão. Cabe-vos pedir desculpas e a ele aceitá-las com má cara. Mas há gente que não reage assim - e mesmo antes de nós, os atropeladores, lamentarmos o acidente, atira um desconcertante 'Peço desculpa'. Podia dar outros exemplos: se eu, impaciente com a lentidão de uma fila, começar a bater com o pezinho no chão e com isto der um pontapé no senhor da frente, este deve fulminar-me com olhar. Mas a espécie mencionada retorquirá com um submisso 'Desculpe'.
A isto chama-se desculpadeiro: aquele tipo de pessoa que nos convida para jantar em sua casa e, ainda não pusemos o garfo na boca, começa por perguntar 'Então, está bom?', para depois acrescentar nervosamente 'Acho que não pus sal suficiente', acabando em 'Se calhar não está grande coisa'. À porta, durante a despedida, sussurra 'Desculpa o jantar não estar grande coisa'.
Se telefonarmos às 3 da manhã a um desculpadeiro ele dirá 'Desculpa não ter atendido logo o telefone' . Se lhe pedirmos que nos venha buscar a um bordel na Bobadela porque está a chover, ele não só virá como dará por si a desculpa-se por ter demorado, o filho rachou a cabeça, a mulher partiu o pé, desculpa, devia ter previsto que o cão ia engolir o piaçaba e teria de o levar ao veterinário.
Esta compulsiva procura de paz devia comover-nos, mas o resultado é o oposto. É que quando um desculpadeiro se penitencia por algo que não fez, está a colocar-se no lugar do masoquista - o que nos obriga a ser o sádico. O aumento do número de desculpadeiros não criará mais harmonia - antes levará ao ruir dos códigos civilizacionais que nos ensinaram desde cedo, nomeadamente este: 'Eu sou melhor que tu'. E com isto escalará a violência, porque iremos dar por nós a libertar os instintos primários que qualquer cidadão consciente faz por reprimir.
Se algum desculpadeiro estiver a ler-me, fique a saber: eu não peço desculpa. E, por favor: tire lá esse ar submisso. Insulte-me, chame-me parvo. Eu sou. A sério. Basta ver, por exemplo, esta crónica.
21,6% de gordura
23,5% de músculo
55,9% de água.
A balança diz que está tudo bem, grande saúde, perfeito equilíbrio - embora eu ache estranho ter 0% de osso. Recebi o veredicto com surpresa, presumo que natural num eterno pau de virar tripas: saudável e com uma muito apreciável percentagem de músculo.
Se alguma vez quiserem bater-me, tenham cuidado: eu sou, quase de certeza, mais muscoloso que vosotros. O que quer dizer que, quase de certeza, me dão cabo do canastro - mas a vitória moral é minha.
E isso, convenhamos, traz um certo conforto.
Descobri que o George Steiner tem uma maquineta do tempo escondida na garagem e vai daí utilizou-a para ver o que eu andava a escrever neste espaço. Ainda alterou meia dúzia de coisas para ver se disfarçava mas o plágio é por demais evidente. Não o vou processar, coitado. Ainda para mais confundiu tudo: misturou convívio com sandes de presunto e copos de Sumol de ananás ou seja, não percebeu nada. A Gina, honesta profissional da casa de convívio “Tromba Azul” ainda se está a rir. Para ser franco, já estava à espera: um tipo com óculos à Manuel Monteiro não pode ser levado muito a sério.
Mas este roubo escandaloso do Steiner pode fazer pensar o cidadão na coisa mais misteriosa (claro está que a critica internacional vai ser unânime em reconhecer o carácter genial do caixa de óculos e dizer que era isso mesmo que ele queria revelar utilizando um, mais uma vez o digo, vergonhoso plágio) de todo o universo: o tempo.
O convívio para pessoas como o Steiner ou o Lopes (este, não o outro) não é a mesma coisa apenas por um pequeno detalhe: o tempo. Não senhor. Apenas a diferença de ser neste ou noutro, passado ou futuro, é indiferente.
É por essas e por outras que sempre achei as máquinas do tempo ridículas e completamente desprovidas de interesse. O tempo não é contínuo para o que interessa. Nós apenas lhe atribuímos essa continuidade porque somos radicalmente egocêntricos e a passagem do tempo deixa marcas no nosso corpo (nem nas nossas almas deixa), e essas, estupidamente, é que são importantes para nós.
A ínfima ou gigantesca fracção de tempo que faz as coisas terem cor, cheiro, forma, sentimento, significado ou movimento diferente não dependem de linha de tempo nenhuma. Aliás, essa linha é tão real como a pesca do esturjão no Rio Alviela.
Basta passar pelos salões de chá e pelas tascas do país: gozar com o PSD (este PSD) tornou-se o prato favorito da Nação. E, sabemo-lo, a culpa é, sobretudo, deste PSD. Um partido que, para simplificar os termos, não se tem dado ao respeito. Todo o PSD se transformou num imenso Santana Lopes, o bombo da festa do comentário político de esquina. Corrijo: a culpa não é apenas deste PSD. Também é do outro - aquele que, alegadamente mais preparado e com maior sanidade mental, deixou que o estado de coma se instalasse na sua própria casa. Os "barões" e os "intelectuais" do partido pouco fizeram para evitar os efeitos Santana e Menezes - e o efeito letal, como lembrou o "Inimigo Público", do cidadão Gomes da Silva. Foram mandando bocas pela comunicação social - gesto alcançável pelo mais previsível comentador do Fórum TSF. É escasso. É preguiçoso. Como acção política, não serve.
Mas voltemos ao exercício generalizado, quase universal, de sátira sobre o "partido social democrata" - uma organização que devia ao menos consultar a Wikipédia em busca do significado da palavra ideologia. Os comentários sobre o PSD estão atravessados de sarcasmo - a forma humorística mais próxima do desprezo. As bocas (a minha também, pois) abrem-se maliciosa e prazenteiramente quando pronunciam os nomes, os apelidos e os gestos "desta gente". O sarcasmo - o desprezo - pelo PSD é um exercício com um fundo queiroziano. Sim, o país modernizou-se mas ainda tem demasiados Ribaus. Rir do PSD ainda é rir de Portugal.
Crónica para o programa "Boa Noite, Alvim". Imagem e edição de Nuno Gervásio, montagem e pós-produção de Pedro Mouzinho.
Crónica para o programa "Boa Noite, Alvim". Imagem e edição de Nuno Gervásio, montagem e pós-produção de Pedro Mouzinho.
Não sou fatalista, nunca fui um desses sujeitos que vêem a perdição da humanidade em cada esquina, não tenho grande medo do futuro.
Mas quando vejo um adulto discutir com outro dizendo que quem usa Comic Sans "é parolo" enquanto o segundo retorque que Arial "é que é completamente démodé", sinto que algo falhou no plano de Deus.
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