Terça-feira, 5 de Março de 2013

É urgente grandolar o coração

É bastante provável que neste preciso momento seja o último dos cidadãos a falar, escrever, alvitrar ou comentar a forma de indignação mais utilizada nos últimos tempos em Portugal: o regresso do programa A Tua Cara Não Me É Estranha.

 

Minto, pronto, piadinha fraca para sacudir o desconforto. Trata-se, evidentemente, da utilização do Grândola, Vila Morena como instrumento de combate político, interrompendo discursos ou funções públicas dos nossos bem-amados governantes. 

É uma excelente ideia, devo dizer. Todas as canções têm uma função e as de combate são mesmo para ser usadas. O Grândola.. parece-me uma escolha evidente e eficaz - excepto quando o coro que protesta desafina em demasia ou o ministro Miguel Relvas se junta à cantoria. 

 

A questão de fazer da canção um hino já não me diz tanto. Prefiro a guerrilha, a performance. Mas como bem viu quem esteve na rua no passado dia 2, a coisa arrepia. E foi bem escolhida: podemos não ter concordado com as posições políticas do seu autor (algumas de um radicalismo e intolerãncia delirante) mas não lhe podemos negar o génio. Digamos, apenas por analogia, que o Sonho de Menino dificilmente obteria os mesmos resultados.E o facto de a canção ter sido um dos sinais para a liberdade é transversal e actual.

 

O poder das canções de combate é incomensurável e prático. Desde a literalíssima A Cantiga É Uma Arma até o protesto dançável de Free Nelson Mandela, dos Specials, vai um mundo de intenções e vontades concretas mas que começavam e acabavam onde eram ouvidas. O que mais me maravilha nesta recuperação do tema de José Afonso é a sua utilização no terreno, servindo para interromper com força e elegância uma voz que não faz sentido.

 

Tanto eu gostei da ideia que gostaria de aplicá-la ao meus dias e ao que sinto. Esta é a minha utopia, senhoras e senhores: um tipo está só, lamentando os lados maus da vida  - falta de dinheiro, de emprego, amores que se perderam - e começa a abandonar-se aos pensamentos mais tristes. Nessa altura - zás! - um coro vindo de dentro do coração começa a gritar o Grandola Vila Morena para evitar que um gajo se arme em parvo. Um grupo convicto de micro-seres, teimosos e decididos a calar as inanidades que nos vêm à cabeça para recomeçar com a vidinha, que não há tempo a perder.

 

Dava tanto jeito. Mais do que aqueles bombeiros que se vêem num reclame qualquer e que surgem para apagar as más digestões. A sério: grandolar o coração evitava perdas de tempo e, no limite, textos como este. Quem sabe, pode ser que um dia ainda oiça cá dentro os famosos passos com que a canção começa. Até lá, só o silêncio e o eco estúpido de mim próprio.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 02:09
link | comentar

Autores

Pesquisar

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Últimos posts

Frangos & galetos

...

Contra nós temos os dias

Do desprezo pela história...

É urgente grandolar o cor...

Metafísica do Metro

A Revolução da Esperança

Autores do Condomínio

Hipocondria dos afectos

A família ama Duvall

Arquivo

Dezembro 2020

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

tags

todas as tags

Subscrever

Em destaque no SAPO Blogs
pub