Quando atravessamos alturas na nossa vida em que o Busque amor novas artes, novo engenho parece abocanhar os nossos dias e alimentar-se deles, tornamo-nos filósofos das pequenas coisas. É inevitável. Pensar – lembrar- torna-nos tristes mas o impensável é que não é alternativa.
As pequenas coisas. Uma viagem no metro, por exemplo. Percorrer um caminho mil vezes percorrido, previsível como os carris que o sustentam, sem surpresas até mesmo nos rostos e nos farrapos de conversas que se atravessam à nossa frente. E de súbito, uma voz anónima, vinda não se sabe de que céu da carruagem, a oferecer-nos o pedaço de sabedoria que tudo encaixa e faz redimir, como se alguém soubesse que ali estamos: «Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio».
E é isso, é exactamente isso. Esse intervalo entre uma partida e um regresso, entre a viagem e o porto. Desejamos entrar no comboio ou sair dele mas nunca nos lembramos que o intervalo existe: o intervalo em que acontecem os erros e as alegrias, em que sinceramente nos iludimos com momentos e pessoas que julgamos terem horizontes mas que afinal medem a vida em colheres de café (deixa-me em paz, Poeta!); o intervalo em que todos os afectos e todas as certezas podem ser abalados mas também ganhos; o intervalo em que o tempo não interessa, apenas a vontade; o intervalo escuro com promessa de luz e tantas vezes ao contrário.
Entre uma viagem e outra, muito do que nós somos está nesse intervalo. Muito do que perdemos e muito do que ganhamos também. O que queremos sobrevive a essa pausa vivida.O que nos ama realmente, também. Nem comboio nem cais fariam sentido sem este intervalo. Sábias palavras, ó Deus dos Transportes Subterrâneos. Não dei atenção ao intervalo – ou iludi-me com ele – e ia perdendo a viagem e o cais. Agora não. Não há pressa. Sento-me tranquilamente no banco do Acaso, à espera que chegue a nova carruagem, o novo cais.
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