Entre as brumas do presente, fico sempre satisfeito quando encontro leves vestígios do pouco de bom que tem a raça humana. Não, não falo da solidariedade sazonal colada às circunstâncias, que apesar de saber que existe e deverá sempre existir, não me chega para acreditar em Rousseau. Nem sequer alinho com as oposições fáceis homem vs.animal, em que a cadela Lilica se torna um modelo de comportamento. Não acho que a natureza humana seja flor que se cheire; mas pelo amor de Deus, não humanizem a bicharada. E parem de dizer que eles têm direitos. O que nos faz humanos é saber que nós é que temos deveres para com eles. Evidentemente, se alguém possuir um cágado que esteja indignado pela forma como os seus direitos são violados, que mo diga, que o meu argumento cai por terra e prometo penitência contínua. E quem diz um cágado, diz, pronto, qualquer ser vivo que mesmo sendo bípede (ou até um golfinho, esses Einsteins do reino animal) não consiga resolver a sua falta de aptidão social ou junte grupos para eliminar parasitas. (quem aí atrás acha que estou a falar do governo pode sair da sala. Obrigado).
Voltando a custo ao que aqui me trouxe: há esperança para nós. Vejo-o quando registo provas inegáveis de que, mais coisa menos coisa, o nosso sentir é igual. Reconhecemos sinais, memórias, gestos e jeitos que numa primeira fase julgamos só nosso privilégio e numa segunda - geralmente aquela em que estamos sóbrios ou tristes, que no es lo mismo pero es igual - damo-nos ao trabalho de generalizar. Há quem tenha dado por isso e transformado a coisa em negócio: por exemplo, desde o inicio deste ano que tenho recebido num mail semi-desactivado missivas urgentes de médiuns do outro lado do Atlântico que me garantem - em separado - ser 2013 o tempo que guarda tudo aquilo que mereço. A única questão seria eu estar atento aos sinais, que são imperceptíveis e fáceis de ignorar. Mas felizmente Sara Freder e outra senhora cujo o nome me escapa perceberam nos astros a minha SCUT para a felicidade. A única coisa que tenho de fazer é pagar a portagem e decorar os números da sorte. Os mails são tão pungentes que apetece dizer «obrigado», mesmo admitindo a possibilidade de haver um desgraçado no Haiti que nasceu com o mesmo signo e ascendente mas que se preocupa mais neste preciso momento em arranjar um tecto para a familia. (Senta, Lilica. Não vale a pena)
Se trago a astrologia para a conversa, não é por acaso. No que respeita à ideia de ter planetas a regerem a minha vida, não contem comigo. É pouco. É fraquinho. Eu vi como Plutão acabou, sem estatuto nem poder, desacreditado por um concilio de cépticos que olimpicamente ignoraram a certeza milenar de que Plutão « representa o invisivel, o misterioso».Por mim, jJá tenho suficientes mistérios em que acredito e nenhum ligado a determinismos práticos ou passíveis de serem observados por sondas espaciais. Mas percebo como o conceito funciona: se juntarmos doze arquétipos (os signos) e a sua descrição de personalidade, o resultado é tão vago que é fácil acreditarmos que o sacana do Mercúrio nos lixou a vida e Vénus nos criou tão estetas e diplomatas. Reconhecemo-nos nas generalidades e esquecemo-nos facilmente que conhecemos um tipo porreiro, afável e criativo como os nativos de Gémeos de que o velho Hitler fazia parte.
Mas a verdade é que o esquema funciona. Eu não sei como será convosco, leitores (e agora é o momento em que finjo que me importo com isso) mas eu sou um hipocondríaco afectivo. Se falam de emoções, identifico-me logo como paciente. Reconheço sintomas por todo o lado, como aqueles desgraçados que percorrem a internet e deparam com doenças que estão convencidos de ter. Não dá para evitar. Um verso de Camões,«Busque amor novas artes, novo engenho» e zás!, sou eu. O Morrissey a cantar «And if you're so clever/ Then why you are you're own tonight» e pergunto de onde é que este gajo me conhece. Sinatra a oferecer-me o Glad To Be Unhappy e parem de falar de mim. Leio um texto, uma crónica, um ensaio e está lá tudo. E a lista continua, sem fim para quem vive de a saber. Cada um terá a sua.
De modo que aqui sim, estaciono a humanidade. A minha doença (e suspeito que a nossa) já foi identificada e transformada em algo que sentimos mas não conseguimos dizer. A arte não passa de um diagnóstico milenar das nossas maleitas.
E a minha tragédia pessoal é não conseguir ser médico de mim mesmo, de modo a transmitir em palavras aquilo que toda a gente já sabe: quem sente não tem cura.
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