Sexta-feira, 25 de Janeiro de 2013

Hipocondria dos afectos

Entre as brumas do presente, fico sempre satisfeito quando encontro leves vestígios do pouco  de bom que tem a raça humana. Não, não falo da solidariedade sazonal colada às circunstâncias, que apesar de saber que existe e deverá sempre existir, não me chega para acreditar em Rousseau. Nem sequer alinho  com as oposições fáceis homem vs.animal, em que a cadela Lilica se torna um modelo de comportamento. Não acho que a natureza humana seja flor que se cheire; mas pelo amor de Deus, não humanizem a bicharada. E parem de dizer que eles têm direitos. O que nos faz humanos é saber que nós é que temos deveres para com eles. Evidentemente, se alguém possuir um cágado que esteja indignado pela forma como os seus direitos são violados, que mo diga, que o meu argumento cai por terra e prometo penitência contínua. E quem diz um cágado, diz, pronto, qualquer ser vivo que mesmo sendo bípede (ou até um golfinho, esses Einsteins do reino animal) não consiga resolver a sua falta de aptidão social ou junte grupos para eliminar parasitas. (quem aí atrás acha que estou a falar do governo pode sair da sala. Obrigado).

 

Voltando a custo ao que aqui me trouxe: há esperança para nós. Vejo-o quando registo provas inegáveis de que, mais coisa menos coisa, o nosso sentir é igual. Reconhecemos sinais, memórias, gestos e jeitos que numa primeira fase julgamos só nosso privilégio e numa segunda - geralmente aquela em que estamos sóbrios ou tristes, que no es lo mismo pero es igual  - damo-nos ao trabalho de generalizar. Há quem tenha dado por isso e transformado a coisa em negócio: por exemplo, desde o inicio deste ano que tenho recebido num mail semi-desactivado missivas urgentes de médiuns do outro lado do Atlântico que me garantem - em separado - ser 2013 o tempo que guarda tudo aquilo que mereço. A única questão seria eu estar atento aos sinais, que são imperceptíveis e fáceis de ignorar. Mas felizmente Sara Freder e outra senhora cujo o nome me escapa perceberam nos astros a minha SCUT para a felicidade. A única coisa que tenho de fazer é pagar a portagem e decorar os números da sorte. Os mails são tão pungentes que apetece dizer «obrigado», mesmo admitindo a possibilidade de haver um desgraçado no Haiti que nasceu com o mesmo signo e ascendente mas que se preocupa mais neste preciso momento em arranjar um tecto para a familia. (Senta, Lilica. Não vale a pena)

 

Se trago a astrologia para a conversa, não é por acaso. No que respeita à ideia de ter planetas a regerem a minha vida, não contem comigo. É pouco. É fraquinho. Eu vi como Plutão acabou, sem estatuto nem poder, desacreditado por um concilio de cépticos que olimpicamente ignoraram a certeza milenar de que Plutão « representa o invisivel, o misterioso».Por mim, jJá tenho suficientes mistérios em que acredito e nenhum ligado a determinismos práticos ou passíveis de serem observados por sondas espaciais. Mas percebo como o conceito funciona: se juntarmos doze arquétipos (os signos) e a sua descrição de personalidade, o resultado é tão vago que é fácil acreditarmos que o sacana do Mercúrio nos lixou a vida e Vénus nos criou tão estetas e diplomatas. Reconhecemo-nos nas generalidades e esquecemo-nos facilmente que conhecemos um tipo porreiro, afável e criativo como os nativos de Gémeos de que o velho Hitler fazia parte.

 

Mas a verdade é que o esquema funciona. Eu não sei como será convosco, leitores (e agora é o momento em que finjo que me importo com isso) mas eu sou um hipocondríaco afectivo. Se falam de emoções, identifico-me logo como paciente. Reconheço sintomas por todo o lado, como aqueles desgraçados que percorrem a internet e deparam com doenças que estão convencidos de ter. Não dá para evitar. Um verso de Camões,«Busque amor novas artes, novo engenho» e zás!, sou eu. O Morrissey a cantar «And if you're so clever/ Then why you are you're own tonight» e pergunto de onde é que este gajo me conhece. Sinatra a oferecer-me o Glad To Be Unhappy e parem de falar de mim. Leio um texto, uma crónica, um ensaio e está lá tudo. E a lista continua, sem fim para quem vive de a saber. Cada um terá a sua.

De modo que aqui sim, estaciono a humanidade. A minha doença (e suspeito que a nossa) já foi identificada e transformada em algo que sentimos mas não conseguimos dizer. A arte não passa de um diagnóstico milenar das nossas maleitas.

E a minha tragédia pessoal é não conseguir ser médico de mim mesmo, de modo a transmitir em palavras aquilo que toda a gente já sabe: quem sente não tem cura.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 04:31
link | comentar
2 comentários:
De maio maduro maio a 12 de Fevereiro de 2013
"E parem de dizer que eles têm direitos. O que nos faz humanos é saber que nós é que temos deveres para com eles."

"Reconhecemo-nos nas generalidades e esquecemo-nos facilmente que conhecemos um tipo porreiro, afável e criativo como os nativos de Gémeos de que o velho Hitler fazia parte."

"O Morrissey a cantar And if you 're so clever / Then why you are you 're own tonight » e pergunto de onde é que este gajo me conhece."

Estas maleitas necessitam de diagnóstico urgente. Livra!
De Nuno Miguel Guedes a 19 de Fevereiro de 2013
Concordo em absoluto. Ainda por cima citei mal a letra dos Smiths. Mas se conhecer algum médico que não tenha nome de letra de canção, por favor envie-me contacto com urgência.
Obrigado.

Comentar post

Autores

Pesquisar

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Últimos posts

Frangos & galetos

...

Contra nós temos os dias

Do desprezo pela história...

É urgente grandolar o cor...

Metafísica do Metro

A Revolução da Esperança

Autores do Condomínio

Hipocondria dos afectos

A família ama Duvall

Arquivo

Dezembro 2020

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

tags

todas as tags

Subscrever

Em destaque no SAPO Blogs
pub