"É um povo pacato, que aceita pacificamente as coisas desde que tenha esperança", afiançou, angustiado, mas sem apanhar ninguém de surpresa, Ramalho Eanes sobre os portugueses, por altura das comemorações do 5 de Outubro.
Pergaminhos antigos por culpa dos quais nada caiu na lama.
Independentemente do ângulo, o português é pacato e bem-intencionado. Aceita pacientemente, amocha, aguenta-se.
Iludido, é sossegado, ordeiro, pacífico e bonzinho. Ganhou fama de não estrebuchar, não dar estrilho [por troca directa com a esperança?!].
Capaz de ser bom aluno, de comportamento exemplar, acomoda-se na carteira do fundo para passar despercebido e cala sem consentir, por culpa dos seus brandos costumes.
Mesmo no maior dos desagrados ferve em banho-maria. Rabuja em silêncio. Para dentro.
Vai na onda e alinha com o resto do rebanho. Um cordeirinho que se põe a jeito para os lobos esfaimados à espreita. Ou que acaba, inocente, no matadouro.
Pelo bom jeito o português deixa-se ir ao sabor da melodia. Habituado a afinar sempre pelo mesmo diapasão, trauteando entusiasmado a música de sempre.
Não é de dar murros na mesa ou de a virar. Tem temperamento de monge tibetano.
O português encolhe-se cabisbaixo. Definha sitiado, vivendo em regime de aceitação geral do descalabro reinante. Não se acobarda e é capaz de suar a camisola, mas resigna-se. Não precisa de mais mundos novos, já deu os que tinha a dar. Ocupado a arrumar a casa, Portugal não lhe pertence até pagar as contas. Mas tem costas largas, pele grossa e lombeira de Atlas para o suportar.
É contido nas revoluções, não é insurrecto por natureza, mas por necessidade. Acredita, pueril, até ao fim, contido, não por defeito, mas feitio.
Não é “povão”, é Zé-povinho. Não é chocante dizer que se fica pelo manguito e abdica da contestação organizada.
Pelo menos andam convencidos disso e muito mais. Dão-no como garantido. E aproveitam-se. Acodem pela pacatez geral. Elogiam-lhe a submissão. Castigam o comportamento económico adolescente que os próprios propiciaram. Desesperam ante a possibilidade de mudança. Os demagogos, os miserabilistas, sabujos, os que nos entregam sem luta, os defensores de mais do mesmo, do cortar a direito, os vencedores de ocasião, especuladores do erário público, adoradores do memorando, os que nos representam pelo melhor soldo, os que nos delapidam, os que acham que manifestação sonora não passa de zumbido.
"O povo português revelou-se o melhor do mundo", constatou elogioso o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, para estupefacção das bancadas parlamentares que se lhe opõem. Em que pensaria quando o afirmou? Na pacatez habitual?
Desenganem-se. O povo português sente-se. É filho de boa gente. Sofre. Lança maus-olhados à troika e, caso se justifique, chega a vias de facto com quem o maltrata. Cospe azedume pelos que o desrespeitam e aperta os gasganetes aos cretinos que o menosprezam. Gosta que o ouçam. Detesta orelhas moucas e cabeças enterradas na indiferença.
Portugueses somos todos nós: aqueles a quem lançam areia para os olhos, os que acabam sempre a pagar, precários, a prazo, fora da validade, enxovalhados, empurrados para fora, tributados, desfeiteados, cortados, desempregados, falidos, hipotecados. Descendo, ruidosamente, orgulhosos, avenidas e transbordando nas praças. Convencidos de que a esperança é uma coisa que nos impingem para nos manterem calados. Descontentes, atulhados de promessas e fartos de ser bonzinhos. As alcateias foram surpreendidas pela força dos acontecimentos.
Desiludam-se os que acham o povo português pacato. O português que se resigna é o mesmo que se agiganta ao sentir-se desprezado. O português saturado de austeridade, de se ver tratado como Zé-povinho, distraído do essencial, embalado por conversas de circunstância e discursos inúteis, já não se contenta com manguitos, agita-se, aflito das costas, atarracado, com escolioses insuportáveis de um mundo pesando-lhe em demasia e apercebe-se que isto só lá vai com ovelhas negras, escapando ao grupo e balindo desalinhadas. Um povo de lusíadas intrépidos que tomam por zézinhos.
Tudo o resto é conversa de político. Fiem-se!
O tempo é de ovelhas negras. Fora do trilho.
Essa é pelo menos a minha esperança. Mas, não será a de todos?
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