Cheguei a Istanbul sem saber muito bem porquê. Fui. Enquanto seguia para o centro da cidade, o movimento nas ruas pareceu-me assustador e selvagem. Perto de Taksim, um homem atravessa a rua na diagonal, seguido de mais três ou quatro pessoas que ignoram em absoluto a circulação dos carros. Criam a sua própria dinâmica e seja o que Alá quiser. Estamos em pleno ramadão, o que poderá correr mal?
O calor e a humidade estufavam o meu corpo quando o táxi me deixou em Beşiktaş. Nessa noite, acabaria por jantar em Eminonu e foi então, no meio desse centro conservador, entre mesquitas e bazares, entre vendedores de rua e turistas, que comecei a ganhar consciência da cidade onde estava.
Istanbul nasceu para servir de colónia a Byzas, devido ao sobrepovoamento. Ao longo da sua história, viveu uma terrível dificuldade em tornar-se independente. Foi palco de disputas que, mais do que desenvolver, destruíram a cidade. Pelo menos até Constantino, que nela encontrou o entreposto comercial estratégico ideal para fazer crescer o império. O imperador foi, talvez, o primeiro a perceber a sua relevância geográfica. Também Justiniano se apaixonou por Istanbul, concedendo-lhe autonomia, sofisticação, estrutura e regras.
Porém, talvez tenha sido o sultanato a marcar aquilo que hoje são os turcos. Apesar de alguns reformistas terem dado um passo significativo na moldagem das idiossincrasias, tais como Abdul Hamit ou Mahmut II, o conservadorismo dos Sultões, a sua imponência e totalitarismo, deram à Turquia e a Istanbul uma cultura de mitomania e - sejamos honestos, mas simpáticos - de alguma aldrabice.
Não haverá muita diferença entre os embaixadores de então e os empresários que chegam hoje a Istanbul para beneficiar de excelentes factores comerciais. Tanto uns como outros tinham de condescender com a magnitude do poder, mostrar alguma subserviência e depender, depender muito. Nas ruas, a lógica é a mesma, desde os serviços mais simples, como a inspecção rodoviária. Foi precisamente aqui, neste serviço, que me apercebi da importância do pequeno poder, da posição dominante serôdia e saloia e, também, da pequena corrupção patente. O que é que eu fui lá fazer? Ora, nem eu sei, muito bem. Fui.
Mas, nem o fosso entre os mais pobres e os mais ricos, que em Istanbul é tão grande como as margens que o Bósforo separa, impede que estes fenómenos e trejeitos sociais se prolonguem para os mais abastados. Há construções absurdas, cedências de passagem, prestação de vassalagem, prioridades invertidas. Que a beleza aparente da cidade turística não te cegue. Que a limpeza das ruas não te engane. Que a segurança que sentes na rua não te deslumbre.
Conheci um homem chamado Ozan. Este homem contou-me, com naturalidade, que os turcos não querem ser europeus mas, antes, americanos; que não querem a organização norte-europeia da União dos 27, os seus métodos, a sua burocracia. Os turcos, segundo Ozan, querem continuar a desenrascar-se neste sistema selvagem de esquemas e manobras de diversão. Querem, no fundo, a conservação total da sua identidade. Falou-me disto com a mesma paixão com que os turcos espalham as bandeiras herdadas de Ataturk por toda a parte.
Foi então que encarei Taksim e Gayreteppe e vi uma cidade a crescer ao seu ritmo, esquizofrénico, é certo. Vi rapazes e raparigas, confiantes e sofisticados. Libertei-me, enfim, do etnocentrismo que tantas vezes esmagou os povos e os condicionou. Passeei pela cidade como passeio em Lisboa que, no fundo, não é assim tão diferente.
Quando dei o primeiro mergulho, em Porto Côvo, lembrei-me de Ozan e do seu sonho em banhar-se no Oceano Atlântico. Senti-me, como diz Vila-Matas, no centro do mundo. Estava, agora, de regresso a casa.
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