À Sofia, cúmplice até na urgência das palavras.
É o crepúsculo dos dias de férias e do intervalo que me impus às palavras que quero e gosto de escrever. Mas foi uma ausência falsa, é sempre para quem tem esta inquietação das frases, dos fonemas, dos signos que, como bichos benignos, tomam contam de nós. Às vezes de forma mansa e paciente; outras, como uma tempestade sem aviso, que nos dói e queremos mitigar com o que está mais à mão, porque estamos terrivelmente tristes ou à beira do abismo de uma felicidade. Assim estas férias: mesmo sabendo a imensa sabedoria e superioridade do silêncio, mesmo aproveitando a lua e as estrelas limpas que se me oferecem, mesmo adormecendo sob o chilrear dos meus filhos ao longe – mesmo assim, a urgência pelo consolo ou pelo permanente desafio de superar esta magnífica impossibilidade que é dizer, escrever o que se sente. E tanto, e tudo por dizer, durante todo o dia, dos primeiros raios de sol até à hora em que converso a sós com Deus no meu quarto, utilizando essas «palavras arranhadas pelo uso», para seguir o conselho e a frase lindíssima do padre Tolentino Mendonça.
Rilke, nas famosas e muito citadas Cartas A Um Jovem Poeta, assegura que sentir esta necessidade diária é o que garante a natureza daquele que quer realmente escrever. Não sei: dias há que na alma se me tem posto uma muito pouco literária preguiça. Mas o regresso é de facto inevitável, mesmo que no final do dia nada tenha sido escrito. Como agora, em que a banda sonora que o vento me traz é uma versão manhosa de “Can’t Take My Eyes Off Of You”, cortesia de uma banda que abrilhanta as festas da aldeia vizinha (serão os Nautilus? Os Lords?). Gostaria de dizer que escrevo ao som do Conversations With Myself, do Bill Evans, como tantas vezes o fiz. Dá patina de escritor, fomenta a minha persona que escreve. Mas não. Hoje é o que há, o que sou. E por isso mesmo abandono-me às palavras alheias, não por desleixo ou artifício. Apenas porque há tanto escrito que está cheio de mim, de nós, tantos auto-retratos feitos por outras mãos. E com vossa licença, o que vos quero dizer e não consigo foi escrito por Nuno Júdice e está incluído no essencial Fórmulas Para Uma Luz Inexplicável. Abandono-me, pois.
ÀS VEZES
Às vezes sentimos que o tempo chegou ao fim, que
as portas se estão a fechar por trás de nós, que já nenhum ruído
de passos nos segue; e temos medo de nos voltar, de dar
de frente com essa sombra que não sabíamos que nos
perseguia, como se ela não andasse sempre atrás de nós,
e não fosse a nossa mais fiel companheira. Às vezes,
em tudo o que nos rodeia,encontramos essa impressão de
que não sabemos onde estamos, como se o caminho para
aqui não tivesse sido o mesmo, desde sempre, e tudo
devesse ser-nos , pelo menos, familiar. A solução é pegar
no fim e metê-lo à boca, como se fosse uma pastilha
elástica, derreter o sabor que o envolve, por amargo
que seja, e no fim pegar nesse resto que ficou e, tal
como se faz à pastilha elástica, deitá-lo fora. Para
que queremos nós o nosso próprio fim? Já bastou
tê-lo saboreado, derretido na boca, sentido o seu
amargo sabor. Então, libertos do nosso fim, veremos
que as portas se voltarão a abrir, que a gente continua
a andar à nossa volta, que a sombra já não nos mete medo,
e que se nos voltarmos teremos pela frente o rosto
desejado, o amor, a vida de que o fim nos queria ter privado.
É isto. Adormecerei, sorriso palerma em riste.
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