Há duas boas razões para pensarmos que as escadas deste mundo são mais vezes descidas que subidas: o elevador e a preguiça. Porém, como metáforas as escadas são invariavelmente descritas tendo em mente o sentido ascendente. Bem sei que também existem as ascensões meteóricas além da subida lenta dos degraus da vida, mas quando se falha é sempre do cimo de um precipício que se cai na direcção do abismo. Isto sucede porque privilegiamos as descrições emotivas da realidade. Em rigor, são inúmeros os casos de declínio gradual, que seriam bem descritos como um descer de escadas.
A insistência na queda livre não resulta apenas da tendência natural para a hipérbole em quem conta uma história. Importa ainda a economia narrativa, o to make a long story short, porque é penoso acompanhar a crónica detalhada de um declínio na ausência de uma promessa de reviravolta. É este zelo misericordioso com que atiramos tanta gente do cimo do precipício que nos impede de apreciar os ensinamentos do simples acto de descer escadas.
Certa vez, desequilibrei-me nos últimos degraus de uma escada que descia. Começara a descida sem problemas, mas depois veio uma aguda consciencialização do acto que realizava e, de repente, o que instantes antes podia fazer de forma tão intuitiva tornou-se uma tarefa impossível. Não cheguei a cair, só que o problema agravou-se. Por saber que não podia pensar na complexidade mecânica de descer as escadas enquanto o fazia, sob risco de a meio do lance de escadas me sentir obrigado a executar pela primeira vez um qualquer passo avançado de tango, o pensamento era ainda mais irreprimível e os últimos degraus surgiam animados, praticamente intransponíveis. Este estado mental só durou uns dias. Seria agora insultuoso enunciar o ensinamento que esta experiência encerra; se a recordei, foi para defender a importância do simbolismo de descer escadas, algo que os mais jovens estranharão, pelo menos até à epifania somática em que os seus joelhos começarão a ressentir-se mais nas descidas do que nas subidas.
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