A good ad should be like a good sermon: It must not only comfort the afflicted, it also must afflict the comfortable.
Bernice Fitz-Gibbon
E quando pensamos que nada mais nos pode surpreender, eis o último reduto: nós próprios. Um tipo distrai-se e de repente bate com o nariz na sua própria personalidade, de forma tão surpreendente como dolorosa ou tragicómica ou tudo.
Assim o que me aconteceu recentemente: enquanto o mundo andava justamente preocupado com o bosão de Higgs (não sei o que é), a crise europeia (ouvi falar) ou a excelência académica de Miguel Relvas (não sei de que falam! Juro, senhor doutor ministro!), eu andava entretido e fascinado a decifrar o anúncio televisivo da Depuralina.
Para o microscópico nicho universal que não faz ideia do que estou a falar, explico: Depuralina Aspira Gorduras Total é (e cito) «um produto completo no combate às gorduras». Dito desta forma, a fome também o é. Mas para o leitor picuinhas ou interessado, uma pesquisa simples informá-lo-á dos alegados atributos da marca em questão. De qualquer modo, não é o produto em si (ou a sua eficácia, que desconheço em absoluto) que é o assunto destas linhas: será mais o modo, hum, criativo, como o tentam vender.
Fiquemo-nos para já pelo registo descritivo do spot televisivo: vários humanóides de corpos perfeitos – vindos claramente do planeta Photoshop – exibem o seu corpo exemplar em fato de banho.Os homens, com uma simetria de linhas que faria o Homem de Vitrúvio de Da Vinci parecer um sem-abrigo (o que de certa forma parece, dado o corte cabelo) cruzam-se com mulheres belíssimas, que os olham lascivamente apesar dos Speedos de 1974 que eles ostentam; estas fêmeas, por seu lado, têm elas também um formato tão imaculado que faz o espectador implorar pela mediania – ou, talvez mais saudável, valorizar as imperfeições da mulher que ama. Tudo isto enquanto a voz off, de forma conveniente, vai assinalando as vantagens do que se está a vender e, como é natural, a esperança de que todos os cidadãos poderão ter aquele aspecto.
Ora tudo seria normal se ficasse por aqui. Anúncios que prometem a boa forma física – e a alegada qualidade de vida consequente – não variam muito. Mas não, não: aqui vai-se mais longe. Alguém pensou que não bastaria mostrar o estado ideal a que o consumidor de Depuralina poderia chegar. Não, isso está visto, usado, os iogurtes magros e os produtos cosméticos fazem o mesmo. Era preciso uma analogia. E qual?, perguntam os leitores. Felizmente é fácil imaginar a sessão de brainstorming dos criativos, onde deveria pontificar um neo-literal:
«Mostrar corpos perfeitos não chega, pá. Temos que ir mais longe. Vá, todos juntos: o que é que a Depuralina faz?»
[copy junior, a medo]: «Hããã...aspira as gorduras?»
[director criativo, triunfante]: «É isso. Genial. Tão simples. Leões de Ouro, Cannes, La Croisette, aqui vamos nós!»
O resultado já todos sabem: temos um anuncio em que a Leni Riefenstahl filmou pessoas com aspiradores. A sério. Corpos nazis, perfeitos, lascivos. Mas todos com um aspirador ao colo. Podem chamar-me romântico mas se a Gisele Bundchen me olhasse com inequívoca concupiscência de Hoover debaixo do braço eu fugia a sete pés.
E é este o mistério que me atormenta, amigos. Porque é que se chama ‘criativo’ a alguém que acha que o melhor modo de exemplificar o verbo ‘aspirar’ é colocar aspiradores? E se a analogia de venda são de facto os aspiradores, porque não aparecem aquelas belezas arrastando um Nilfisk industrial, daqueles que pesam uma tonelada e são populares nas unidades hoteleiras de todo o mundo?
Tudo coisas que me ralam. Tantos problemas que me assolam, tantos dilemas, tantas aflições reais que tenho de apaziguar; e no entanto, sendo macérrimo, continuo na dúvida sobre que aspirador comprar.
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