Havia um romance de Lobo Antunes, um romance que aos meus 20 anos, mesmo lido numa praia de Maiorca rodeado dos seios descaídos de quarentonas alemãs classe média-baixa, parecia tão tão bom - e que hoje me surge programático e sobre-adjectivado (mas ainda furioso).
A dada altura o narrador dizia que quando um miúdo enterra a cabeça entre as pernas segurando-a com as mãos e repete Caralho, Caralho, Caralho, algo não está bem.
Era, esclareço, um romance sobre a guerra.
O homem que eu vi hoje, num camarim, antes de um concerto, com a cabeça enterrada entre as pernas segurando-a numa mão (um cigarro a tremer na outra), a repetir vernáculo, não era um miúdo: tem 41 anos, história e a história está-lhe encravada na garganta. O médico disse: cançinoma. O médico receitou: cantar. Uma purga de fados.
Não foi perfeita a primeira apresentação de "Sempre de Mim", o novo (e soberbo) disco de Camané. Mas em duas, três, quatro canções aquele tipo que - por sorte ou azar - é um corpo a selar inquietude, fez-nos um drible, deu um golpe de rins, com a estocada de espadachim da voz arrombou o cofre do bom gosto burguês, e a fria ponta metálica de cada nota cravou-se abruptamente numa zona ilocalizável do meu cérebro.
Quase sem luz no palco, ele cantou: "Eu quero estar só". E repetia: "Quero estar só".
Não faço ideia se está ou não, se quer ou não está-lo.
Mas quando um tipo de 41 anos enterra a cabeça entre as pernas segurando-a numa mão (um cigarro na outra) algo não está bem. Há ali qualquer coisinha encravada.
Fazê-la sair da garganta na medida certa é da ordem hierárquica dos escolhidos.
E os escolhidos têm de estar sós.
Porque ninguém suporta a sua própria guerra por muito tempo se não tiver génio.
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