A festa seguia pela tarde fora. Depois do lanchinho de rojões, os grupos iam cantarolando e animando as mesas. Ouviam-se gargalhadas e as palmas soavam alegres. As mesas de madeira, compridas e sujas, anunciavam já o fim das festividades. Curioso, o nome deste encontro: Identidades. E ali estavam todos, vindos de muitos lugares - uns que vêem o mar, outros que respiram da serra. As modas são, no entanto, as mesmas. Repete-se, com euforia, um cancioneiro que foi passando de boca-em-boca, de terra em terra, como um caixeiro-viajante. A cantiga popular, em Portugal, viajou e conquistou o coração dos que nela encontraram a alegria e o sentido da vida.
Foi assim que conheci Antero. Juntou-se a nós a meio de uma moda alentejana que iamos impondo a todo o recinto:
"Venho da Ilha dos Vidros
Da terra dos diamantes
Ando no mundo perdido
Pelos teus olhos brilhantes.
Pelos teus olhos brilhantes
Pelo teu rosto de fada
Ter amores não me custa
Deixá-los é que me mata."
Trazia uma concertina muito velhinha. Era um instrumento invulgar, com dois teclados de apenas uma fileira, cada um. Antero tocava-a com uma satisfação contagiante. Ao meu lado, o rapaz da flauta tamborileira acompanhava-o enquanto nós iamos inventando a letra e fazendo da mesa percurssão.
No fim da cantoria, desabafa que pouca gente sabe tocar aquela geringonça. É rara e precisa de muitas horas de dedicação. Depara-se, então, com o problema da tradição. Se ninguém a quiser aprender, aquela pequena concertina ficará sem tocador e será votada ao esquecimento. A sua história não o merece. Contou-nos, entretanto.
Há mais de 50 anos, Antero comprou esta concertina numa antiga casa, no Porto. Andou com ela por todo o lado, perdeu noites a aprendê-la. Por razões que o país prefere esquecer, teve de partir para o Ultramar e vendeu o instrumento. De lá, emigrou para a Alemanha. Quando regressou, dedicou-se à braguesa e ao cavaquinho. Certo dia, um compadre seu disse-lhe que o sogro tinha para lá uma concertinazita. Mas que o velho estava mal e que preferia dá-la "quando o assunto estivesse arrumado". Assim foi. Levou Antero a ver o brinquedo. E lá estava ela, a sua velha concertina, 45 anos depois. A coincidência sem a ajuda da internet. Mandou afiná-la e levava-a, agora, para toda a parte, para animar a rapaziada.
Quando o crepúsculo desceu sobre a serra e o ar refrescou, decidimos partir. Deixámos o folclore para lá do sol posto, escondido, para não incomodar as cidades. Esquecendo que é da identidade que se alimenta uma cultura, a cidade tem um certo desprezo pelas coisas simples. Procura-se o progresso e a modernidade. A tradição é uma coisa feia e retrógrada, como aquela velha concertina. Até ao dia em que alguém a quiser tocar, melhorar e evoluir com ela, levando consigo o som dos dias mais bonitos.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.