Nunca saberemos se o Major Valentim Loureiro estava a pensar em Miguel Relvas quando, numa conversa com Pinto da Costa, proferiu as imortais palavras “é preciso algum folclore nesta merda.” Nesse caso, o Major reagia à indignação de Pinto da Costa perante o que se passara depois de um FC Porto-Sporting . Certo é que essa reflexão regressou, anos depois de ter sido disponibilizada no Yotube por um oficial de justiça (é preciso algum folclore nesta merda), com mais pertinência do que alguma vez imagináramos. E não é que é realmente necessário algum folclore nesta merda? Prova disso é a licenciatura de Miguel Relvas, concluída através de um sistema de equivalências obtidas a partir de, entre outras experiências, importantes funções exercidas na Associação de Folclore da Região de Turismo dos Templários. Ao que parece, a possibilidade está prevista na lei. É que, sabem, é preciso algum folclore nesta merda.
Mas atentemos na complexidade premonitória, cultural e escatológica da afirmação do Major. Eu não sou nenhum Foucault e e nunca assisti a uma aula de semiótica (deram-me equivalência por cargos exercidos na Associação Ludoterapêutica dos Pátios Universitários), mas permitam-me arriscar uma interpretação.
"É preciso”.
Já todos teremos usado esta expressão e estamos conscientes do seu profundo enraizamento na sociedade portuguesa. “É preciso” remete-nos para uma vasta panóplia de temas e contextos em que algo é necessário. É preciso conversar, é preciso ver isso, é preciso ter calma, é preciso pensar no assunto. Ocasionalmente, dá-se o caso de ser preciso fazer, mas antes será preciso marcar uma reunião, criar um grupo de trabalho, e, em última instância, ver se é preciso mais alguma coisa. O resto logo se vê.
“É preciso algum”
É preciso, sim, mas vamos com calma. Para todos aqueles que conhecem a personalidade político-feirante de Valentim Loureiro, há em “é preciso algum” um tom de moderação que não deixa de causar perplexidade. Ao mesmo tempo, parece honrar a matriz fundadora do partido que o viu nascer. Sá Carneiro ficaria orgulhoso, se esta frase não tivesse mais umas palavras a seguir.
“É preciso algum folclore”
Já sei o que estão a pensar. É aqui que a coisa começa a descambar. Enganam-se! É precisamente no folclore que o país se une em torno de uma ideologia, uma forma de estar, ou uns quantos créditos ECTS. Das festas de Agosto ao sistema político-partidário português, passando pela formação académica de Miguel Relvas, há algo que não podemos negar: é preciso algum folclore. Por um lado, porque ninguém quer demasiado folclore. O que seria! Um país perpetuamente em estado de folclore, que aqui serve como sinónimo de sítio. Por outro lado, sentimo-nos incompletos – cultural, existencial e academicamente – sempre que o folclore escasseia. O folclore é, pois, o princípio unificador deste país, um consenso alargado entre organizações de festas, líderes de governo e conselhos científicos.
“É preciso algum folclore nesta merda”
Só assim, com este remate, pôde o Major ascender à galeria dos Eças e Herculanos, para citar hoje e sempre. Obrigado, Major. Há de facto um folclore que nos une, do qual precisamos, um folclore que informa o nosso carácter e o curriculum vitae, mas é na merda que nos quedamos. Uns de nós porque estão na merda, no sentido indigente da expressão, outros porque votaram na dita merda, alguns porque comem merda às colheres, e finalmente uns quantos predestinados que são a própria merda, a espécie de merda que dança folclore como ninguém. Até porque a possibilidade está prevista na lei. Infelizmente para o país.
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