Acordo com a notícia da morte de um homem que não cheguei a conhecer. Naquela mesma rua, ainda se sente, por vezes, um histórico de outras violências: os saveiros a chegar, carregando doenças e outros infortúnios; vidas amaldiçoadas pelo lodo e pela miséria. Ficou este carpir sussurrante que agora ouço de duas mulheres. Os olhos encharcados pelo sofrimento constante. Ao meu lado, um amigo do defunto olha para lado nenhum e vejo-lhe a dor da memória a questionar-lhe a própria vida. Choram por eles próprios. Ninguém devia morrer ao Domingo.
Na cidade onde eu nasci, sorte foi coisa que nunca parou na estação. O comboio passa a rasgar o silêncio e fica sempre o vazio dos dias. Os tempos são outros mas, as aflições imortalizaram-se na decadência dos edifícios. Há uma calma enganadora. O Tejo, que corre tranquilo, roubou-lhes o sonho, separou-os da outra margem, como quem diz "o teu lugar será sempre desse lado". E ali ficámos todos, conformados com o erro colectivo, com as invejas e os fracassos, à espera da corrida de Domingo. A felicidade suprema chegará pelas seis da tarde, no momento das cortesias. Olharão para Morante e sonharão com Sevilha.
Nos próximos dias, a pequena cidade ganhará um brilho raro. Faremos promessas de que tudo irá mudar. Ressuscite-se a esperança. Mas, as bebedeiras manter-se-ão, acabando sempre nessa desgraça que os persegue. Regressarei a Lisboa para não mais me preocupar. As preocupações são outras, coisas mais sofisticadas e instruídas. Viva o progresso! Abaixo a província! E é com este dilema que me deito - o de não estar em parte alguma.
Como diria o Redol: nasci com passaporte de turista.
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