Afinal, em que ano é que estamos? Esqueçamos o que aprendemos com kant sobre o tempo. E já agora o espaço. O passado é uma realidade à parte. Com características próprias. Uma lógica distinta. O passado é revivalista. Avança à caranguejo. Dois passos ao lado até ao ano daquela namorada. Três atrás até ao nosso melhor ano no liceu, que coincidiu com a saída daquele disco e a exibição daquele filme. Quatro ainda mais atrás quando fomos pela primeira vez a….
Se em divagações letárgico-melancólicas fecharmos os olhos enquanto fazemos variar, debaixo dos dedos, as frequências radiofónicas, perdemos o norte temporal, hesitando no ano em que nos encontramos. 60, 70, 80 serão décadas privilegiadas.
O presente parece incómodo. O passado 2.0, em doulby surround, versão tecnicolor está aí. E leva preferência.
Regista-se um aumento exponencial de programas e estações vendendo barato a ilusão de que numa aparência Goodbye, Lenin!, tudo permaneceu igual enquanto envelhecíamos. O mesmo sucede com a televisão, internet e moda. E tudo o que se possa alimentar do “houve uma altura em que eu”.
Habituámo-nos a reler a nossa revista preferida extinta há um quarto de século e recuperada para a blogosfera. A rever episódios das nossas séries favoritas do tempo do VHS, no YouTube. A ouvir como novidades absolutas hits de um top ten de 1979 numa rádio a viver da nostalgia alheia.
Podemos estar facilmente em 20 de julho de 1969 e na eminência de fazermos, em directo, parte da audiência que escutará: That's one small step for man, one giant leap for mankind.
O passado não passa.
É um cão raivoso que nos agarra as pernas sem intenção de as deixar. A diferença é que voluntariamente lhas oferecemos, sem vontade de o ver largá-las. Porquê? Bem, o passado é apetitoso. Vende. Um tempo de heróis. Sebastiânico. De posters, colheita revista Bravo nº1568, na parede. Exagerado. Interpretado e reinterpretado por nós. Dificilmente corresponde à realidade. Uma jukebox recheada de sucessos. É um tempo não vivido. Aldrabado. Idealizado. De abundância. De leite e mel. Marcando só os dias que nos interessam. Tem pouco para não gostar.
Toda a gente tem fotografias com um grupo sorridente de indivíduos com ares de finalista e de quem precisa de um estômago novo em sítios como Lloret Del Mar ou equivalente.
Convivas entoando refrões I Just can´t get enough em êxtase king of the dance floor. Episódios guardados, surpreendentemente, com saudade. E essa é a razão por que a internet se transforma no equivalente a uma gigantesca sala preparada para receber bodas de casamentos ou festas de baptizado a preços baratuchos só que para convívio género reunião Amigos de Alex. Adultos com responsabilidades procurando informação sobre os seus queridos anos de esplendor, 80 ou outros. Entrando numa cápsula do tempo que faria a inveja a Júlio Verne ou H. G. Wells à procura de reminiscências retro à base de episódios do Marco e Tom Sawyer recuperados para os filhos, mais interessados no Gormiti, mas percebendo a importância de se manterem disponíveis para o downgrade.
Aproveitando a ligação em rede para saltar de computador em computador de modo a andarem para trás no tempo, convictos de que “no meu tempo é que era bom”. Até atingirem a paragem pretendida: 1984, 85, 86… de Sanjo acabados de comprar e penteado New Romantic. Passeando-se por uma galeria de imitadores anacrónicos. Ali vai um Jim Kerr em pose Don’t you Forget about me. Olha um Boy George armado em karma Chameleon.
Claro que os tempos são outros e os Simple Minds andam em Tour ‘5x5 Live’ tipo greatest hits, em palco, para saudosistas. E Boy George vai saltando de dependência em dependência, acumulando penas e trabalho comunitário obrigatório.
O passado não devia deixar saudade. Evitava as figuras tristes. Infelizmente, como isso não acontece, todas as épocas regurgitam, na ressaca dos tempos de glória, Elvis com peso a mais.
Quando Madonna canta em Coimbra na sua MDNA Tour, Papa Don't Preach, carrega toda a gente para 1986. E ninguém se importa. O mesmo se diga de Bruce Springsteen no Rock in Rio-Lisboa em que se estava em qualquer ano, menos 2012.
Até Sean Penn no papel de uma estrela rock reformada, em This Must be the Place, de Paolo Sorrentino, se inspirou no Robert Smith de Boys don’t cry.
Um revivalismo próprio de quem acha que perdeu alguma coisa importante que esteve na sua posse, ou não está contente com o que tem, mas que pode muito bem de alguma maneira ainda recuperar circula pelo ar. Um universo paralelo, onde as pernas de Tina Turner não saíram prejudicadas pela celulite. E Bryan Adams, por quem os anos não passam, continua interessado em Run to You.
Todo um sortido à base de rádios, publicações, vestuário e calçado, filmes e internet para inadaptados do tempo presente. Gulosos pelo antigamente. Conjugando, satisfeitos, pretéritos. Patinando no seguir em frente.
Com tudo isto sobram poucos para o dia-a-dia. O quotidiano é uma rua da baixa sem moradores. É preciso coragem para viver no presente. Mais agora com a crise.
Em todo o caso, acho que se tivermos em mente o Livro do Desassossego, o problema ficou muitos anos antes resolvido por Fernando Pessoa:
Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho.
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