(a S.C)
Não sei se vos acontece, leitores, e é mais do que provável que não estejam interessados. Mas já que aqui posso estar, suplico indulgência para estas simples palavras.
Acontecem estes pensamentos em contraciclo, quando os dias estão cheios de nada que nos impõem ou cheios de tudo o que nos apetece: o Euro, o euro, os festejos do santo lisboeta que foi erudito e recluso mas que insistem em celebrar fazendo simulacros ébrios de manifestações na Síria. Os dias dos piqueniques com marca na mais bela praça da capital, o péssimo equipamento alternativo da selecção nacional, as contestações públicas porque sim, as contestações privadas porque enfim, a indignação desorientada que transforma o indignador na cousa indignada.
E entretanto a vida. Num relapso, numa repetição de uma finta, num olhar que escapou às câmaras - a vida. No meio desta Babel que amamos e odiamos, poder olhar para o que nos acontece, poder olhar para os outros, poder olhar para o tempo.
Aviso: por feitio e necessidade consegui fazê-lo. É um exercício perigoso, anti-social e tão mal-visto como ter o contacto pessoal do Miguel Relvas. Mas é necessário. O exercício, não o Relvas. Parar, por segundos que sejam, na feira popular do nosso quotidiano e olhar para única invenção humana que nos conseguiu escravizar:o tempo. O inventor de todos nós, Shakespeare (sim, sou Bloomiano, obrigado a todos) avisava exemplarmente no Henry IV: "But thoughts, the slaves of life, and life time's fool.And time, that takes survey of all the world, time must have a stop".
Decerto, mas qual tempo, de todos os que vivemos? O dos amantes, tão diferente e tão rápido em relação a quem arrasta os passos pelas manhãs? O tempo do que sabe que vai morrer? O que espera em vão o encontro que nunca irá acontecer? O que se esquece do prazo do IRS? O tempo que destrói o amor, como avisava Vieira?
A vida é feita de todos estes tempos e nós, no nosso egoísmo, não paramos para os observar e disfrutar. A vida não tem atalhos. E se não nos entregamos com tempo a olhar para os caminhos que os tempos nos oferecem, passamos ao lado do que é realmente importante. Porque o tempo não é o nosso amo, é apenas a derradeira incógnita. Se não o olharmos nos olhos, mesmo quando nos fere, perdemos o jogo. Não é o tempo que tem que parar: somos nós. Ou então brincamos a alguma coisa a que abusivamente chamamos de vida.
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