Há aproximadamente 18 anos atrás, um primo mais velho emprestou-me um objecto esculpido a partir de polipropileno e surlyn, duas coisas que devem fazer mal ao meio ambiente, mas que tornam o planeta um sítio melhor. Era uma prancha e estava num estado lastimável. Azul no deck, branca no slick, e receio que podre por dentro. Foi a minha primeira prancha e o meu primo nunca mais a pediu de volta. Este texto é uma espécie de agradecimento, se me estiver a ler. Ele provavelmente já não se lembra, mas patrocinou um dos acontecimentos da minha vida. Que nunca mais foi exactamente igual. Os meus pais não andavam com vagar para oferecer pranchas naquela altura, portanto qualquer gesto de caridade era bem vindo. Nessa altura, aceitei com normalidade o facto de a prancha absorver imensa água. Haveria de secar, tal como o fato de surf que ainda não tinha, do qual ainda não precisava. Umas ondinhas no Verão eram quanto bastava para me encher as medidas. Até àquele dia de Agosto, em plena praia do Vau. Entrou uma daquelas ondulações divinas que abençoam a costa algarvia a cada três quinze dias e lá fui eu. O mar devia rondar o metro nos sets, mas eu hei-de continuar a contar a história como se tivesse estado em Teahupoo com o Raimana. Permaneci dentro de água das 14 às 20 horas, altura em que os meus pais me obrigaram a sair da água. Só tinha uma licra vestida e não ofereceu grande protecção. Saí de lá com a barriga completamente assada e feliz. Essas 6 horas continuam a ser a minha melhor marca pessoal, aliás, nem sei explicar como é que aguentei lá tanto tempo. Só sei que de cada vez que me pediram para sair da água, eu pedi para apanhar mais uma onda. Os meus pais devem ter percebido que estava a acontecer qualquer coisa importante. Por esta altura, já tinha desistido de 2 ou 3 desportos federados e manter-me 6 horas preso a uma actividade era praticamente impossível.
Depois vieram a Mach 7-7 e o fato da Hot Buttered, ambos usados, enrugados e perfeitos. Estava pronto para o Inverno. No dia em que me preparava para estrear este material, o meu pai levou-me a mim e a mais dois amigos a Carcavelos. Chegámos lá e estava torto, gigante e impossível para um talento do meu calibre. Tínhamos visto ondas em Santo Amaro, mas não as tínhamos avaliado correctamente, pelo que pedi ao meu pai para dar meia volta e parar o carro junto dos surfistas todos. Cá fora, o Marcos Anastácio e o Rodrigo Herédia eram todos eles sorrisos e preparavam-se para entrar. Havia ainda bodyboarders como o Nuno Neto, rei do drop knee nacional, o Nuno Leão, e o Duda Leandro, tudo gajos que eu me habituara a ver na televisão, na Bodyboard Portugal, e que idolatrava. Entretanto veio o set. Vi tanta gente bem disposta e entusiasmada à minha volta que pensei logo em vestir o fato e fazer a minha estreia invernal ali. Ao que se seguiu um rude despertar. O Dapin apanhou uma onda que me pareceu e ainda hoje me parece enorme e destruiu aquilo como se não houvesse amanhã. A segunda do set parecia ainda maior e já tinha dono. Não sei se era o Miguel Ruivo mas o cutback que ele fez a sair do tubo ainda hoje me parece dele. Mais tarde veria fotografias que me pareceram ser desse dia numa edição da SurfMagazine que há-de estar num caixote na garagem do meu pai. Estas memórias meio fotográficas devem-se às cassetes vhs em que gravava toda e qualquer edição do Portugal Radical (olá Raquel Prates, olá Rita Seguro, olá Maria Borges, muáááá). Do WQS em Pantin ao EPSA em Tapia, passando pelos freesurfs em Carcavelos, nos Coxos ou no Havai, estas imagens nunca mais me abandonaram nem vão abandonar, enquanto este cérebro funcionar sem soluços. Ainda hoje recordo tubos do Tiago Oliveira e do Miguel Fortes como se tivessem acontecido ontem (provavelmente aconteceram, se os Coxos estiverem a dar).
Entretanto aconteceu mais uma tonelada de coisas e não dá para contar aqui tudo, até porque ia ser mais do mesmo e vos ia aborrecer de morte (mais pranchas, mais fatos, mais dias de ondas grandes em que fiquei cá fora, a descoberta da existência de ondas para além de Carcavelos, e assim por diante). As coisas que contei, e as que ficam por contar, fizeram com que 18 anos depois esta coisa do surf ou do bodyboard ou do skimming ou das carreirinhas, é-me completamente indiferente qual, com que esta coisa das ondas mexa comigo de uma forma muito diferente do resto. Mexe comigo e com muita gente que conheci ao longo dos anos, cujas aventuras no mar passaram a epopeias em terra. A malta que eu refiro nesta curta história, dos bodyboarders da altura aos surfistas célebres que ainda hoje dominam os melhores line-ups (aproveito para juntar skimmers que vi competir na ilha de Faro ou atletas que competiram no nacional de kneeboard em ìlhavo, um abraço a todos se me estiverem a ler), eles não me conhecem de lado nenhum, mas foram os heróis da minha adolescência e alguns deles ainda são (vejam um cutback do Miguel Fortes nos Coxos, ou melhor, vejam cem cutbacks desses, e digam-me que aquilo não é uma coisa especial). Foi a partir das proezas nada sobrehumanas destas pessoas todas, de os ver dentro de água e querer fazer um bocadinho melhor ou apanhar uma onda ligeiramente maior, que eu próprio juntei alguns dias de ondas inesquecíveis às minhas memórias e convenci o meu pai durante alguns anos, até eu ter carro, a ir buscar-me a Carcavelos às seis e meia, sete da tarde, fizesse chuva ou fizesse sol. E, bom, posso não perceber puto de cinematografia nem ter uma câmara de filmar, mas os filmes gravados na minha memória já ninguém mos tira. Sou um amador feliz. É por isso que, na semana em que Lisboa recebe o seu primeiro festival de cinema de surf (não percam isto), vou comparar as minhas imagens às de muitos outros que, felizmente, continuam a fazer justiça às epopeias reais e imaginadas de todos os que, de uma forma ou de outra, se apaixonaram pelas ondas para sempre.
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