Os preconceitos têm um sentido de justiça que me agrada. É verdade que, quem é “preconcebido” pode perder alguma coisa, mas quem perde garantidamente e em força é aquele que “preconcebe”. Perde porque há-de morrer de tédio com as suas certezas, sem tesão com a falta de surpresa, aborrecidamente a dizer para ele próprio que sempre teve razão e ninguém para o ouvir.
Isto nota-se muito na “cultura”. Aquela pose que dá jeito em jantares onde se atiram máximas sobre autores e obras “incontornáveis” e intraduzíveis onomatopeias de desprezo a propósito de coisas que, em verdade, nunca se experimentou.
Os jornais são um bom exemplo (há milhares de outros). Os ditos de “referência” e os “outros”, como se a “referência”, neste caso, tivesse alguma coisa de absoluto e não oscilasse ao sabor de lideranças políticas e empresariais.
Aceitando que, neste jogo, como em muitos, não há inocentes, saúde-se o “Correio da Manhã”, que tem a nobreza de não tentar parecer “sério” e a franqueza de ter por “referência” mais evidente o país a que pertence, com tudo quanto esse país tem de bom e de mau.
O preconceito poderá não deixar ver, mas, para lá da longa secção de crimes passionais, machadadas e afins, há uma boa mão cheia de anos que o “Correio da Manhã” é, provavelmente, o jornal diário que mais notícias traz, que toca sem medo em assuntos onde outros preferem manter silêncios e distâncias cómodos e que, goste-se ou não, faz notícia com a primeira página a um ritmo e constância verdadeiramente admiráveis. Mesmo a secção dos golpes de machado e queimaduras com ácido entre vizinhos e familiares não deixa de falar dum país real que poderíamos pensar não existir, mesmo ao lado de nossa casa, se só lêssemos os senhores “derreferência”.
Dito isto, preconceituoso me confesso. Que há anos me encaminho para estas conclusões e continuo a preferir comprar coisa menos colorida no quiosque e a deixar o “Correio da Manhã” para uma leitura gratuita no café (num qualquer dos muitos cafés desse país a que o “Correio da Manhã” se refere e que o disponibilizam, qual serviço público, entre “A Bola” e o “Record”.
Como nem todos os dias se vai ao café ou, indo, nem sempre o “Correio da Manhã” não está a ser lido por outro camarada entre uma bifana e a meia de leite, não acompanhei, como merecia, a coluna que o Francisco José Viegas lá publicou entre (salvo erro) 2008 e 2011. Esses textos foram reunidos e publicados em livro, o Dicionário De Coisas Práticas, há coisa de ano (salvo outro erro), ali pelos dias em que foi conhecida a nomeação do Francisco para secretário de Estado da Cultura.
Como, uma vez entrando na categoria dos livros, os preconceitos se reduzem drasticamente (mesmo que estejamos a falar dum livro de anedotas da Popota), comprei e li o Dicionário, chegando em choque à conclusão com que abri esta crónica: quem realmente perde com o preconceito é quem “preconcebe”. Nestes três anos, houve alturas em que me lamuriei da falta de cronistas que apreciasse, de uma voz de direita esclarecida que desmascarasse o embuste político em que vivíamos e de um mestre da cultura que nos orientasse no supermercado de oferta artística em que – felizmente (bem pior seria o contrário) – vivemos. Tudo isso estava ali, no “blogue” do Francisco, entre machadadas em Vila Pouca e escândalos políticos em Lisboa.
Serve, pois, a presente de chicotada auto-infligida e recomendação franca. Não digo que se mudem todos para o “Correio da Manhã”, mas, pelo menos, que o catrapisquem no café para equilibrar as doses de “referência” e “realidade”. E, sobretudo, que adquiram e consultem o Dicionário De Coisas Práticas. Entradas concisas para um pensamento que não pactua com a cultura “moderninha”, de facilidades, “fedelhos”, pedagogos, big brothers e virgens puritanas.
P.S: Vale também isto para o Henrique Raposo, que só li como merecia nos textos reunidos em Portugal Do Avesso, ao invés de o ter feito pouco a pouco, semanalmente, no “Expresso” (que já há anos deixei de ler, não por preconceito, mas recomendação do meu médico dos ossos).
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