Não sou do tempo do vinil. Enfim, não no sentido último. Não faltavam singles e LPs na casa paterna, bem acomodados num velho móvel gira-discos que fora prenda de casamento e que ainda dura (o móvel, mas também o casamento). Só que, quando chegou o momento de ter o dinheiro e a paixão para comprar música própria, já estavámos no CD.
Com pena. Gostaria de desfraldar histórias de velhos 55 rotações e truques para contornar agulhas dadas a idiossincrasias, falar do murmúrio do papel da bolsa interior libertando o vinil, do pó, de grandes sessões de vira o disco e toca o mesmo.
Não foi assim. Paciência. Chegamos frequentemente no fim das festas onde sonhámos ter dançado.
Apesar de tudo, ainda fui do tempo dele. Do disco. E posso falar do primeiro que comprei – e não do primeiro download que fiz (aí, confesso, não sei onde se carimbará a nostalgia).
E, como se, nas matérias essenciais, o acesso fosse vedado ao acaso, entre tanto mau gosto da adolescência, decidi que o primeiro disco que compraria seria de Bruce Springsteen (os homens conhecem-no como aquele da guitarra; as mulheres como o do rabo). Valor seguro. Anjos-da-guarda falando por nós. Coisa que não passaria. Ordens superiores dos espíritos do futuro. Podia ter sido Onda Choc, mas eles não o permtiriam.
Isto para chegar aqui, à manhã de hoje, quando Lisboa parecia ressacar do espectáculo de ontem. O Chiado deserto, as passadeiras livres para atravessar no vermelho, vozes roucas, um silêncio de surdez pós descarga histórica de decibéis.
Bem sei que não será assim. A imprensa diz que estiveram lá 81 mil pessoas, um número gordo, mas que não dará para contaminar uma cidade por onde passam dois milhões e meio, todos os dias. Mas eu digo que é. Que o condutor do metro ainda vai a trautear o “Thunder Road”, que esta gente de phones está a descobrir “The River”, que nos escritórios se correm os estores e desligam as luzes para ouvir, só mais uma vez, “Dancing In The Dark”.
Pois. É só música. Música, letra, homens e mulheres all-american, ainda por cima. Coisa muito própria, sobre coisas que, dirão, não vivemos. Mas vivemos. Ainda esta noite, vivemos outra vez. Springsteen como “boss” eterno e indiscutível, pai, irmão mais velho de gente que lhe comprou o primeiro disco em três décadas diferentes. A gritar, a solar, a explicar por que não veio a mulher, a discursar, a pregar, em português, em inglês, em soul, a pegar num miúdo ao colo, a abraçar as garotas, a aceitar pedidos, a correr, a guitarrar caído no chão, a dar o coração inteiro como quem acaba de chegar a casa. A E Street Band como filarmónica de super-heróis. As canções de operários, vagabundos, jovens casais desencantados, famílias que se têm de proteger, fantasmas e outras coisas misteriosas, mas que estão na razão de todos sermos, de vez em quando, insignificantes e gloriosos.
A imprensa pormenorizará os acontecimentos; a crítica fará os balanços. Daqui, a crónica termina garantindo que Springsteen nos salvou outra vez a vida, a nós e às boas dezenas que de perto vimos em volta (não há prova científica de que tenha salvo os 81 mil, embora o bom senso para isso aponte), ligando outra vez o sentido das coisas.
Aquele primeiro disco, comprado com os dinheiros dados pelo avô e as fracções subtraídas ao lanche, foi para nos trazer até aqui. Orgulhosamente roucos de ter passado a noite a gritar com um bando de outros furiosos reencontrados. Rebeldia passageira e redentora. Sonhos de erros que temíamos não ter cometido. Mesmo que só por aquele momento sejam verdade.
Tramps like us, baby we were born to run.
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