As melhores cartas são as que nunca foram escritas, tal como as melhores palavras são as que ficam por dizer.
Todas as cartas são poemas. As cartas de amor são poemas ridículos.
Uma carta sobre uma carta sobre antes do derradeiro desespero: «Late afternoon Friday my last sight/ of you alive./ Burning your letter to me in the ashtray/ with that strange smile». Ted Hughes escrevendo a si próprio com a dor da última visão de Sylvia Plath.
Todas as cartas, embora tenham data, nunca são datadas. Perduram na memória e renascem sempre que as relemos. Obrigam à ressurreição em vida.
Das pouquíssimas coisas certas ditas por Rousseau: «As cartas de amor começam sem saber o que se vai dizer e terminam sem saber o que se disse».
O nosso mundo é fundado sobre correspondência: Abelardo e Heloísa no Historia Calamitatum, Séneca a escrever a Lucílio, São Paulo para os Romanos e Coríntios.
«Nunca um escrito saiu de qualquer mão que se não tornasse um fruto vivo», avisava há quatro séculos D. Francisco de Portugal. Como explicar isto a uma geração que escreve «axo q t amo»?
Uma carta recebida é sempre uma ausência percebida.
O médico pode salvar vidas, o juiz pode julgá-las mas é o carteiro quem as transporta.
Uma carta de amor sincera e bem escrita pode facilmente redimir toda a Humanidade.
Soror Mariana Alcoforado, o jovem Werther: dois casos de amores bem correspondidos.
Qualquer carta de amor é uma utopia solitária.
As formas epistolares electrónicas do nosso tempo carecem da verdade do manuscrito. A mais arrebatada declaração transforma-se numa notificação das Finanças.
A caligrafia é o coração da carta. Assis Pacheco percebeu-o e proclamou a sua radical beleza: «Porque tudo se escreve com a tua letra».
Todas as cartas trazem consigo um destino mesmo que não tenham destinatário.
Não é por acaso que desconfio do Tarot: tentar perceber o destino nas cartas é uma violação de correspondência.
Nos romances epistolares que atravessam a literatura podemos encontrar um inventário completo das paixões humanas. Das Ligações Perigosas a Drácula, sempre humanos, demasiado humanos.
Todas as cartas que enviamos são o nosso testamento. Mas sempre que as escrevemos estamos a iludir a morte.
Quem escreve uma carta deixa sempre o corpo para enviar a alma num sobrescrito.
Nas cartas existe sempre uma gramática masculina ou feminina. Durrell dizia que as mulheres escrevem sempre as melhores cartas aos homens que estão a trair.
Numa carta a ortografia deve ser um estilo de vida.
Todas as cartas são de jogar. Naquelas que são escritas jogamos apenas os dias.
[texto originalmente publicado na edição «Cartas» da revista Egoísta, em Março de 2012. Esta edição (e a «Viagens») venceu o Grande Prémio Categoria Revista dos Papies deste ano]
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