Não se pode falar de admiração; é mais uma perplexidade permanente e sem remédio. Quem são estas pessoas que percebem de Excel e que está por trás delas?
É a actualização do velho choque civilizacional entre os miúdos que iam para letras e os que iam para as ciências. Não havia meio-termo, então. O liceu tinha essa doutrina maniqueísta sobre a espécie: ou se sabia duma coisa ou se sabia doutra. Não havia uma terceira via nem hipótese de acumulação. Era preciso escolher de que lado se estava.
Essa guerra separou famílias e amigos. No pátio, à mesa do café, no bairro, pareciam todos iguais – jogavam os mesmos jogos, riam das mesmas piadas, disputavam as atenções dos mesmos rapazes e raparigas – mas, depois, esvaía-se a ilusão. Chegado o momento da escolha, ela era tomada sem clemência. Não se conheciam vizinhos nem primos; uns alistavam-se num exército e outros noutro e, a partir daí, agiam em conformidade. Da memória da pessoa de letras desaparecia subitamente toda e qualquer noção matemática elementar ou princípio das “Ciências da Natureza” aprendido aos dez anos: vertebrados e invertebrados, mundos animal, vegetal e mineral, fórmulas químicas mais complexas do que H2O e – oh! Requintes do demo! – contas de dividir. A de ciências, em compensação, conservava apenas uma vaga recordação de como se lia e escrevia. Lembrava-se de uma distinção misteriosa entre vogais e consoantes. Sabia da existência dum escritor chamado Eça de Queirós, mas ninguém lhe tirava da cabeça que “Os Maias” tinham sido criados como um instrumento de tortura para obrigar conspiradores políticos a confessar.
A invenção do Microsoft Office foi a certificação do cisma: os meninos de letras podiam brincar com o Word; os de ciências com o Excel. Com muita sorte e algum amor, talvez confessassem partilhar uma secreta atracção pelo Minesweeper.
Isso não passou. Já me têm pedido listas de qualquer coisa. Se as faço chegar num ficheiro Word, precipito o apocalipse. Um exceliano louco grita do outro lado que não sabe o que fazer com aquilo e que agora como é que vai ser, alguém ligue para a Gulbenkian a ver se eles lá têm especialistas que consigam converter aquela monstruosidade numa folha de cálculo.
Aparentemente, estas pessoas não conseguem ler uma palavra a menos que ela esteja dentro do quadrado duma tabela. “Os Lusíadas”, por exemplo, todos encaixadinhos num grande quadro de dupla entrada, revelar-se-iam, de repente, diante deles, em todo o esplendor. Sem isso, são um manifesto irracional debitado por um extraterrestre anarquista certamente movido por intenções pérfidas.
O contrário também é válido. Pessoalmente, suspeito de qualquer indivíduo que me envie um ficheiro Excel. Penso que está a pôr-me à prova. A ver se me denuncio como membro de uma sociedade secreta dirigida pelo Grande Excelómano do Universo. Desconfio que, introduzindo palavras secretas, cada quadradinho daqueles se abre e revela quem matou JFK, se Camarate foi atentado ou acidente, provas incontestáveis sobre que querem, afinal, as mulheres.
Mas não me dobram. Fecho a coisa e mando um email de resposta com um ficheiro de Word onde se lê, repetidamente, qualquer coisa adulta como “Figas-figas”.
Imagino-os a desesperar do outro lado do computador, tentando introduzir aqueles caracteres na calculadora científica, na ânsia de que lhes tirando a raiz quadrada, obtenham qualquer coisa inteligível.
É uma guerra fria cruel que se passa em segredo em andares e andares de escritórios. Mas cuidado com os agentes duplos: aqueles génios do mal que conseguem encaixar gráficos em ficheiros de texto. Têm a mania que são muito bons, os sobredotazinhos. Estou agora mesmo a aplicar-lhes o velho manguito. A ver se fazem melhor.
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