Tolero tudo nos meus amigos – até as suas virtudes. Não são os defeitos que, numa primeira fase, encanitam o espírito. Com as sombras de cada um podemos nós bem – e até, metaforicamente falando, protegem de exposições solares excessivas e outros deslumbramentos de ocasião. O problema, a existir, está no brilho da rapaziada, na forma como consegue transcender-se. Ou por outra: ser amigo de alguém é começar por aceitá-lo não com todos os seus defeitos, como se costuma dizer nas esquinas, mas com todos os seus dons e qualidades. Esses é que nos fragilizam e nos fazem equacionar as nossas imperfeiçõezinhas, as nossas lacunas humanas e existenciais, as nossas limitações. Tudo aquilo que gostaríamos de ser e, por inimizade dos deuses, não somos.
O Vítor é o maior nos discursos da junta. O Mário é o rei do SMS romântico-sentimental. A Júlia é, sem esforço, uma cozinheira de bacalhau à Braz de mão cheia. O Arlindo é um discretíssimo e digníssimo voluntário, capaz de inventar tempo livre para fazer companhia aos velhos e distribuir alimentos e brinquedos aos novos. O Zé Carlos tem requinte gastronómico. A Marta, mesmo que a tratem mal no café e na repartição, não conhece o ressentimento. O Rui é um tipo porreiro. Tudo isso chateia um pouco, eu sei. Gostávamos de ser nós a exibir os atributos. Por isso calamo-los. Normalmente elogiamos nos amigos as qualidades que não nos podem perturbar. Aquelas que perturbam, silenciamos. É preciso aceitá-las, digo eu, e difundi-las depois numa aparelhagem de alta fidelidade. Como quem aceita que o mundo parecer ter uma noção muito sua e própria do que é a justiça. O que não é verdade. Existe é apenas a ilusão, no instante em que vislumbramos o lado do bom dos outros, de o nosso se ter eclipsado. Mas ele está lá - está, sim senhor. Passada a inveja ternurenta que se tem pelos amigos, as virtudes alheias não são para engolir de uma vez - são para degustar.
É essa a coisa boa de ter amigos muito diferentes, com vocações bem diversas: poder fazer das suas virtudes um menu de degustação (não confundir com o menu de desgostação, que tem a ver com os sucessivos desgostos que inevitavelmente vamos experienciando nas relações ao longo da vidinha). Provamos um bocadinho daqui, um bocadinho dali, e, pouco a pouco, tornamo-nos seres menos vagos e centrados em nós próprios - mais completos e capazes. Um amigo culto, por exemplo, esse clássico. Pessoa lembrou algures, numa nota algo interesseira, que a cultura de um indivíduo está dependente da cultura daqueles com quem se dá. Começamos por invejar a cultura literária de um amigo mas depois aceitamos receber lições de literatura russa às quatro da manhã nos seus aposentos, enquanto nos afundamos no sofá e ele se entusiasma com o whiskie.
Aterrados que estamos nas bebidas, aproveite-se para dizer que às vezes as virtudes dos amigos são muito pouco óbvias, um pouco como os recônditos sabores de alguns néctares. Digamo-lo sem comparações: todos nós temos amigos insuportáveis. Insuportáveis para o comum dos mortais, claro. E, sabemo-lo, um amigo é o incomum dos mortais. O que obriga a um esforço quase santo de atenção, de procura e de, virtude das virtudes, paciência. Que vale sempre a pena, reconheça-se. Pode parecer uma metáfora barata, a puxar à ocasião, mas faz todo o sentido: saber usufruir as virtudes de um amigo é como saber provar um vinho superior, daqueles com sabores menos óbvios, só detectáveis pelas provas persistentes de um especialista. Mesmo um amigo muito defeituoso (à primeira vista um autêntico carrascão) poderá ter virtudes escondidas, possivelmente só detectáveis ao fim de algum tempo de convívio e regabofe. Sim, diz com razão o lugar-comum que a amizade é como um bom vinho. Mas não é só por causa do factor tempo que isso acontece - também é por causa da forma como se usa esse factor tempo. Desta possibilidade de fazer a pesquisa, nos guichets e arquivos das almas, daquilo que as relações superficiais nunca podem topar.
Há, sim, há verdadeiros enólogos da amizade, João Paulos Martins do companheirismo – e é para esse estatuto que, permitam-me a normatividade, se deve caminhar. São aqueles que conseguem passar a zona da resistência e do medo em aceitar as virtudes dos amigos para depois irem, em cada investida, procurando o melhor dos outros e fazer questão de dizê-lo – cantando, dançando, sapateando - a toda a gente. Eu aproveito o meu tempo de antena para dizer que o Luís, quando é bom, é muito bom. Que o João, além de ser um dos maiores escritores vivos, é capaz de ir ter sempre com um amigo em apuros, às quatro da manhã se for preciso. E que o André é dos maus feitios mais generosos do universo. E pronto, já chega. Já fiz o trabalhinho de casa. Para a próxima tento elogiar mais.
(Publicado no "Almanaque da Amizade e do Vinho")
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