Acontece volta e meia. Pessoas que acabo de conhecer, ao descobrirem como ganho a vida, soltam – com a mesma expressão de tradução difícil, mas, apesar de tudo, calorosa – “Ah! Tem mesmo ar de escritor.”
Ar de escritor. Às vezes, é a minha própria mulher quem o diz, numa variante ligeira que distingue uma circunstância particular de uma hipotética essência duradoura: “estás mesmo com ar de escritor” ou (com determinada peça / conjugação de peças de roupa) “ficas mesmo com ar de escritor.”
A persistência no termo “mesmo” denuncia um solilóquio interior que a pessoa manteve, anteriormente, com ela mesma, mas que não chegou a verbalizar. O que torna tudo um pouco mais preocupante.
Notem: já percebi, pela dita expressão de tradução difícil, que ter “ar de escritor” não é uma coisa má. As pessoas não o dizem enojadas, não se afastam para uma distância de segurança, não chamam a polícia, não vão antes conversar com a pessoa que tem ar de operador de raio-x, não tapam os olhos aos filhos. Noto-lhes até, arriscaria, uma certa aspiração na voz que parece – parece – roçar uma pequena admiração. Porque as pessoas, por muito que detestem incontáveis escritores em particular, costumam simpatizar com escritores em geral.
O problema é tudo quanto ter “ar de escritor” parece excluir. Ter “ar de escritor” implica, decerto, não ter ar de Adónis, ar de atleta olímpico, ar de príncipe dinamarquês, ar de herói de guerra, ar de quem figure na lista dos 500 mais ricos da Fortune.
“Ar de escritor” é assim uma coisa que sugere, talvez, uma pessoa inteligente e interessante, mas potencialmente deprimida, uma lástima no desporto, alguém que, quando arrisca um passo de dança na pista da discoteca, coloca a Protecção Civil em alerta amarelo.
“Ar de escritor”, dá-me ideia, e a julgar por mim, implica uma certa palidez, uma considerável miopia, uma certa relutância em gastar 15 euros numa recarga de lâminas de barbear e uma preferência por camisolas de gola alta de que só se abdica perante intimação do tribunal. Não quer necessariamente dizer “feio” ou “tipo perfeitamente incapaz de sacar uma miúda com menos de cinco dioptrias”, mas, convenhamos, também não significa exactamente “deus sexual”.
Por vezes, penso em responder a estas pessoas que, do Lobo Antunes ao Paul Auster, vai uma considerável diferença de “ar”. Mas, depois, calo-me e prefiro escrever sobre a coisa.
Enquanto penso que ar terá o leitor.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.