É uma coisa silenciosa, que é como dói mais. Um gesto discreto, porque pressupõe a evidência da situação. A constatação de uma superioridade que conta, de antemão, com o reconhecimento tácito por parte do ser inferior. Entram no elevador, vêem o piso zero seleccionado, introduzem a chave que dá acesso aos pisos do parque e depois fazem-no. Rodam ligeiramente o pescoço e arqueiam a sobrancelha com precisão geométrica, dizendo: “Tu sabes que eu sou melhor, não sabes?”. E seguem o resto da viagem de queixo erguido e olhar fixo num horizonte elevado, passando em voo rasante sobre a nossa cabeça, subitamente enterrada entre os ombros.
Donde veio isto, não tenho ideia. Mas ter um lugar de estacionamento, tornou-se, parece, a palma olímpica. Imagino pais perguntando às filhas casadoiras: “Quero lá saber se ele é bom rapaz! Tem lugar no parque da empresa ou não tem?”. E, a partir daí, tudo é possível: “Sim. Ele tem mais 65 anos do que eu, esteve preso nos últimos 40, está todo cheio de doenças, abandonou as últimas três mulheres e os 15 filhos à fome e diz que só me quer para cozinheira e escrava sexual, mas tem lugar no parque da empresa.” Pais: “Filho!!!!!”
Sim. Segundo a ética contemporânea – aquela onde toda a gente tem um blackberry, um cargo em inglês na assinatura do email (um estafeta é, por exemplo, um Senior Delievery Specialist) e toma brunches em vez de – q’horror – pequeno-almoço, é desprestigiante respirar o mesmo ar que o resto da espécie. Ter de cruzar a recepção do prédio, passar pela mesma porta por onde – asco – toda a gente passa e, imagine-se a pelintrice, caminhar pelo próprio pé até à viatura ou – artimanhas do demo – transporte público, é atestado de falhado (na assinatura do email, ler-se-ia: “Senior Losing Executive”).
As lutas fratricidas dentro das empresas por quem tem direito a lugar de estacionamento e porquê. A magnanimidade com quem alguém cede solenemente o seu lugar no parque quando vai de férias. O choque desalmado perante a descoberta de que alguém estacionou, impiedosamente, o seu carro plebeu sobre o sagrado lugar de outrem.
Antes, queríamos um lugar no céu. Agora, um lugar no parque. Chamem-me retrógrado, mas preferia a primeira. Se me arqueassem a sobrancelha, é porque, ao menos, devia ter feito alguma coisa agradável.
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