Acredito que há um pouco do que fomos naquilo que vamos sendo. O tempo, as ideias, as alegrias e as tristezas – tudo o que de forma não suficiente chamamos de ‘vida’ – vão ajudando na viagem, nas partidas, nos regressos e na surpresa das esquinas que vamos encontrando. Mas nunca, nunca seremos o que fomos.
Explico. Uma das minhas maneiras preferidas de me confrontar com o prefácio de mim é reler livros que de gostei muito na primeira vez que os li. O resultado deste exercício é sempre extraordinário: livro e leitor parecem e são diferentes sempre que lidos à luz do hoje. Há algum tempo fiz a releitura de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. A dada altura uma personagem de que agora não me recordo (a própria Alice?) resume tudo o que aqui foi escrito: «Mas não vale a pena voltar a ontem. Nessa altura eu era outra pessoa».
O tema que sobrevoa esta edição do Lisboa Capital República Popular, «Ser solidário» fez-me voltar a ontem – e por consequência, a outra pessoa que fui. Não me consinto – porque acho inútil e aborrecido – qualquer tipo de nostalgia que não seja a do instante que agora mesmo passou. Mas foi inevitável, perante esta frase, lembrar tempos, lugares e músicas. Um disco que me marcou e confirmou o génio absoluto de Zé Mário Branco, que transcende ideologias ou visões da vida (e escreve-vos quem tem esses valores praticamente nos antípodas dos do cantor); uns versos que ainda hoje me guiam («Fazer de cada perda uma raiz/e improvavelmente ser feliz»);
dEraEr Era o tempo dos concertos «Solidariedade com...». Nicarágua (contras e sandinistas, lembram-se?), Chile, pessoas, qualquer coisa. Os efeitos dos pós-revoluções começavam a assentar, o primeiro presidente eleito (ainda militar) ia para o segundo mandato e a democracia caminhava debilmente para uma normalidade qualquer. E essa pessoa que fui ia a todas, cantando o refrão de O Barco Vai de Saída, do Fausto enquanto acreditava sinceramente que estava a ser solidário e em comunhão com todos os que enchiam coliseus e outras salas. Não estava, sei-o agora. A minha militância era mais afectiva do que efectiva.
E houve aquela tarde de calor indolente, em que um amigo chamado Pedro Branco entra pela sala da Associação de Estudantes a que eu pertencia e lança o apelo: «O meu pai precisa de vozes para um coro de uma canção. Agora! Quem vem?». Fomos todos. O “pai” era – adivinharam – o próprio Zé Mário Branco. O resultado está registado e é com muito orgulho que me encontro na vozearia mais ou menos organizada que participa na canção Qual é a tua, ó meu?, incluída no mesmo disco.
Muitas versões de mim depois surpreendo-me a escrever sobre esses ontens que cantavam, de um optimismo quase absurdo mas sincero. E lamento, lamento tanto que a vida me tenha ensinado que o bicho humano gosta de praticar pouco o que louva. Não se trata de não acreditar na solidariedade; trata-se de acreditar (ou de constatar) que ela tem aparecido apenas na pior das situações ou instigada por campanhas massivas. Ela existe, eu sei. Há provas de pessoas e instituições que a praticam, sem medo nem vaidades. Mas por outro lado lembro que os mesmos que aderimos tão entusiasticamente na ajuda às vítimas do terramoto haitiano são exactamente os mesmos que os deixam agora no esquecimento. A media e a nossa consciência flexível faz o resto.
Parafraseando Dickens vivemos os piores dos tempos, vivemos os melhores dos tempos. A humanidade que teima em existir no ser humano vem ao de cima com as adversidades e todos os dias vemos exemplos notáveis de ajuda. Não me importo de dizer que eu próprio beneficiei com isso. Mas não consigo deixar de pensar na irritante sazonalidade dos bons sentimentos colectivos. Não é de resto de estranhar: o filósofo Emmanuel Lévinas (de certa forma um precursor e influência no pós-modernismo anunciado por Gilles Lipovetsky) esforçou-se para desenvolver a ideia da primazia do Outro, rejeitando assim todos os conceitos antropológicos que desde Descartes giravam à volta do ego. Dizia mesmo que a civilização ocidental encontra-se marcada pela redução do Outro ao Mesmo e que seria urgente um «humanismo do Outro», onde a violência de um rosto alheio nos convocaria ainda com mais força a sermos Nós. Infelizmente a nossa sociedade empurra para um isolamento, o que equivale a uma espécie de permanente angústia relacional, o que no limite nega uma das principais características do que é ser humano: a comunicação. É espantoso verificar como esta ideia se transformou na regra da humanidade ocidental , com as excepções a virem apenas em situação de crise. A solidariedade como virtude praticada em uníssono é impossível pela própria natureza humana. Cepticismo antropológico? Sem dúvida, mas um cepticismo que pela minha parte aceita mais o ‘talvez’ do que o ‘não’.
Apesar de tudo estes não podem ser os dias do pessimismo. São dias de acção, sob pena de tudo se perder. Iniciativas como a LCRP ajudam a pensar em valores universais e colocá-los em prática. E espero – meu Deus, como eu espero – que quem sou hoje e isto vos escreve esteja completamente enganado naquilo que aqui diz acreditar e que o outro que fui ontem possa regressar em força e confiante.
(texto publicado no jornal que acompanhou a edição deste ano do Lisboa Capital República Popular)
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