Todas as adolescências são musicais. Arrisquemos mais: as músicas que ouvimos na adolescência são as mais importantes das nossas vidas. Apareceram numa fase de definições identitárias várias e trazem consigo todos os “instantes decisivos”, de vivências fundamentais, em que foram ouvidas. Ao longo da vida adulta não são raros os momentos em que são recordadas e lembrados os sentimentos que as acompanhavam. Os sons trazem imagens – que se vão substituindo umas às outras – e assim, de forma espontânea, se vai editando a longa-metragem de um crescimento. Há quem prefira deixar a adolescência nesse país distante onde está, para não ter de remexer ora no tesouro que foi ora na caixinha de problemas que constituiu. O escriba que assina estas linhas (o que é apenas uma forma de evitar o totalitário “eu”) preferiu ir, quase 20 anos depois de o ter deixado, buscar esse “tempo sagrado” e tentar perceber que mudanças ocorreram no território que pisou nessa altura de todas as descobertas.
É aqui que entram as ilhas dos Açores. Ou, se quisermos ser mais rigorosos, uma ilha dos Açores, São Miguel. Foi esse o solo terrestre com vista para o mar que suportou o seu crescimento. Foi ai, nessa paisagem sem adjectivações possíveis, nesse ambiente ilhéu único, que cultivou imensas dúvidas e algumas certezas, no ambiente psicológico de investigação próprio da idade. Foi aí que partilhou com os amigos as experiências de criatividade e libertação que são transportadas, noutras circunstâncias, de forma naturalmente mais condicionada e normativa, pela vida fora. Como é que está a terra que deixei quando tinha 18 anos? Na altura de fazer as malas uma primeira pergunta foi logo colocada na bagagem. Interessava-me (sim, o melhor é assumir o controlo do avião) ir buscar a adolescência e aproveitar para perceber em que é que se transformou a ilha. Seguiam-se outras, decorrentes das primeiras: os locais onde cresci estão intactos – têm a mesma morfologia, o mesmo cheiro, a mesma poesia? As pessoas que lá estavam continuam no mesmo sítio? Estarei preparado para me confrontar com as rugas dos lugares e dos rostos? Pisamos aqui o terreno das emoções que todos os regressos suscitam: uma mistura entre curiosidade e apego. E a consciência de que muitas vezes é necessário vigiar a nostalgia, esse mar de conforto onde dá sempre jeito ao espírito banhar-se. Chegámos – nós, equipa de filmagem – à ilha de São Miguel nos finais de Setembro com a ideia de fazer um documentário ficcionado a partir de algumas ideias que tínhamos lançado em conversas várias.
Depois de um brainstorm numa casa junto à Lagoa das Furnas (oh privilégio!), alinhámos uma série de situações que queríamos gravar e fizemos um primeiro desenho da calendarização. Mas as pessoas com as quais nos fomos cruzando nas três semanas de rodagem tornaram esses planos iniciais apenas o ponto de partida para todo o tipo de surpresas. Cheguei, sim, à pista na qual queria aterrar: as pessoas, continuam a ser as pessoas a dar a volta ao mais programado dos textos. Hoje não sabemos se temos um documentário com momentos de ficção ou uma ficção com momentos documentais. Os abraços um a um ficarão para altura oportuna. Mas fica aqui já um agradecimento do tamanho do céu que estão a sobrevoar para quem – ora nos momentos de representação ora na interpretação de músicas ora em depoimento – também fez o exercício de ir procurar os seus discos perdidos. Agora quem diz discos perdidos também diz milagres encontrados. Até já, numa sala de cinema perto de si. A primeira exibição do filme "Noite de Festa" é amanhã, às 15h30, no Teatro Micaelense, integrada no Panazorean.
O trailer é este:
(Publicado na revista da Sata)
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