Tenho dormido numa casa que não é minha. É numa rua bonita, com muita luz. Durante os fins de semana, o barulho de gente que se diverte não me deixa dormir. Acordo estremunhado mas a algazarra não me irrita e muito menos me entristece. Os gritos, os risos, as correrias lembram-me dias mais felizes. Momentos, sensações que tive, tempos que não regressam mas que não me trazem melancolia, apenas a consciência de os ter vivido bem e a certeza de que aquela já não é a minha vida. Como uma truta que vai descendo o rio, até pode tentar lutar contra a corrente mas o esforço que fará apenas a vai levar mais depressa para a foz. A boa, a única maneira é deixar que o rio nos leve suavemente.
A rua é bonita mas não é minha. Nunca será. Não foi por aqui que passou o meu rio, não é este o meu leito. É um bocado de madeira que a corrente trouxe e me fez parar. Sei que não há ramo que pare a água e daqui a nada seguirei o meu rumo. A estrada, os passeios, as casas pouco importam. A minha rua é feita de sentimentos, de memórias, de bons e maus momentos, sobretudo de gente, da minha gente.
Vejo um gato daqui da janela. Está para ali, deitado na pedra quente, ao sol que o aquece. Sempre só. Estica de tempos a tempos um corpo gordo, afia as unhas de olhos fechados como se aquilo fosse fundamental para que se sinta vivo. Come e dorme por instinto. Olha duma forma opaca para quem lhe dá atenção como se não percebesse por que diabo alguém o fará.
Detesto gatos.
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