E de repente é tão estranho e tão bom regressar às palavras. Um tipo que as cultive precisa disso: desses arbustos grafados por onde espreitamos os outros, tão paternalistas como imbecis, uma espécie de BBC Vida Selvagem da natureza humana onde nos esforçamos por esquecermos que também nós somos feitos dessa parca natureza. Mas parece não haver nada a fazer, as palavras insistem em ser ditas mesmo que pouco valham.
Para mim a ausência desta casa foi imposta pela matéria-prima da escrita - a vida. No meu caso: a vidinha. Como diria o hippie talentoso enquanto tocava no seu piano branco em directo da sua mansão branca onde lá fora o esperava o seu Rolls Royce branco:"imagine no possessions". Desculpem, a citação era outra, da autoria do mesmo: a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados a fazer outros planos. Certo. A vida, com sorte, é o que nos acontece quando não fazemos planos. E contra-ataco com o que dizia um tipo que era tudo menos hippie milionário (google it): a vida é o que acontece nesse acontecer. E nessa altura não há paciência para escrever porque pura e simplesmente não é verdade. A perda, a morte, a separação,as finanças, a raiva, a tristeza, a extrema alegria, o quotidiano - tanta coisa que impede qualquer crónica sincera. É preciso distância e tempo.
Mas passada a tormenta, a atenção e a vontade regressam. Estamos sentados num restaurante e ouvimos uma extraordinária conversa de um casal que se separa.E em francês (onde estavas, Rohmer?). Dizia ele, desesperado:«Eu tenho outras, sim. Mas não como tu». E ela , olhando o muito pouco existencialista bacalhau à braz que degustava:« Eu sei de mim. O problema são as outras». Frederic Forrest com o olhar triste em One From The Heart, a desculpar-se pateticamente perante uma Teri Garr resoluta:«It was nothing.It was just a little something». Só lhe valeu uma canção do Tom Waits.
Nessa altura o cronista percebe que está pronto a falar com alguém, que a sua vidinha é igual a tantos outros e diferente de todos. E chega a casa com esta urgência vulgar e inútil de contar o que nós somos. O que quem escreve é no momento em que escreve.
A crónica não é um diário nem deve ser. Explico-me: há dois dias fui assaltado. Nada de grave, telemóvel e pouco mais. Mas deu tempo para perguntar, quase evangelicamente.«Fazem isto para quê?». Resposta óbvia:«Porque precisamos». Talvez a crónica (ou escrever, ou criar), por vezes, seja este assalto a nós mesmos. Porque precisamos.
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