Esta crónica estava para começar assim: “Este fim-de-semana, uma raridade: tempo.” Tenho o projecto pessoal de elimar todas as palavras desnecessárias, mas ocorreu-me, depois, que estaria a pisar terreno de Paulo Bento, aclamado autor das frases sem verbo.
Em todo o caso, está passada a ideia: este fim-de-semana, ao contrário do habitual, aconteceu algum tempo livre. E assim usei-o para cumprir uma daquelas velhas tarefas sempre adiadas: arrumar papéis. Papéis que se acumulavam aqui perto da secretária à espera de arquivamento condigno em caixa própria no sótão.
Papéis pessoais à parte, boa parte da tarefa consistia em tratar jornais e revistas, na forma completa ou em artigos arrancados aos agrafos e proceder a uma selecção adequada ao exíguo espaço livre da caixa em questão.
Passei as primeiras páginas dos jornais de 12 de Setembro de 2001, cheias de fumo; o 11 de Março de Madrid; o 7 de Julho de Londres; a captura de Saddam Hussein; a morte de Saddam Hussein; muitas mortes, na verdade: Antonioni, Bergman, Kadafi, Steve Jobs. Os dossiers com a vida completa de João Paulo II; as campanhas futebolísticas do Euro 2004 e do Mundial 2006. Depois, artigos, de uma forma ou de outra, sobre a escrita: Robert Mckee, Jon Favreau, 16 histórias de 10 palavras encomendadas a 15 autores. Suplementos defuntos: Ícon e Preguiça do igualmente defunto Indie (também por lá andava a última edição, bem como a última d’ A Capital, e a última Grande Reportagem, e uma Grande Reportagem com reportagem sobre a FLA na capa, obra do Nuno Costa Santos), e o último “Olho Vivo” do Eduardo Cintra Torres, e o 6ª, anexo tão recente do DN que pareceu de repente tão longínquo, a Atlântico, o Já (sim, do ponto de vista cronológico, esta enumeração é o caos), revistas com garotas na capa, revistas de cinema (algumas com garotas na capa). Muitas notícias de ciência: o verdadeiro rosto de Cristo; os milhões de europeus que descendem todos, afinal, de apenas dez pais; a sequenciação do genoma humano. Críticas a livros de amigos, artigos sobre lançamentos de livros de amigos (incluindo foto do Francisco José Viegas sem barba – um artigo de colecção), incontáveis jornais desportivos de muitos domingos consecutivos, subitamente interrompidos quando o Benfica perdia qualquer aspiração ao respectivo campeonato. Muitos treinadores, muitas promessas, chegadas de vedetas e despedidas de outras. Diferentes edições acerca do fim do velho Estádio da Luz e da inauguração do novo. Algumas revistas estrangeiras. Muitos suplementos de balanço com o melhor e o pior de cada ano. Uns quantos DNA, incluindo um onde José Eduardo Moniz, na capa, pré-Big-Brother, diz que também ele quer sorrir.
Estão ali uns bons dez anos. E, no fim, a pergunta é: para quê? Para quê guardar ainda papel? Que informação daquelas não estará hoje alojada nos sótãos da web, disponível à distância de alguns segundos ou, na pior das hipóteses, muita paciência?
A razão, concluí, enquanto tentava comprimir papel que encheria uma pequena sala da Torre do Tombo numa caixa onde não caberia um computador dos antigos, nada tem a ver com a memória. A memória é atoleimada e visceral, teimosa e sanguínea. Não vai em tecnologias futuristas como não vai em nostalgias organizadas. Administra o seu próprio território, com as suas leis e respectivas penas. Um dia – ela sabe-o, contra todas as evidências – viverá um serão grandioso entre pó e aranhas, chás ou aguardentes, onde abrirá a caixa e revelará a uma qualquer prole do futuro os heróis, as mulheres, os amigos, os crimes, as obras, as proezas e os extraordinários fracassos do seu tempo.
Mesmo que isto nunca aconteça, é a sua missão. Contar à sua maneira a história do tempo que viveu. Para o caso de nunca aparecer quem lho saiba explicar.
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