Era uma manhã de Novembro quando o telefone tocou. A proposta era simples e irrecusável: escrever um diário de viagem a bordo daquele que é um dos dois maiores navios de cruzeiro do mundo: o “Oasis of the Seas”. 362 metros de comprimento, 220 mil toneladas de peso, capacidade para 6296 passageiros e 2196 tripulantes. Uma proeza da engenharia naval que já mereceu documentário no Discovery Channel e que caminha para o estatuto de lenda. E, de repente, essa imagem feita de uma praia rodeada de coqueiros, ao som de brindes e batuques, rompeu o Outono depressivo, o fluxo contínuo e monocromático de notícias sobre a crise. Era a salvação em oito dias de fuga.
Isto foi dois meses antes de o capitão do Costa Concórdia lançar o pânico na indústria dos cruzeiros; a viagem só se concretizaria agora, na semana que passou, quando outro navio da Costa Cruises fez disparar o alarme sobre aquela que é, na verdade, a forma mais segura do mundo de viajar. Mais do que a aviação. Mais do que a velha bicicleta. Estatisticamente, há tão poucos acidentes em cruzeiros que é mais provável irmos desta para melhor fulminados por um raio. Medo? Guardo-o para quando atravesso o Marquês de Pombal.
O “Oasis” é uma cápsula onde cabe um pouco de todo o mundo e, ao mesmo tempo, uma pequena nação à parte e em movimento. A Royal Caribbean, empresa proprietária, é norte-americana, mas foi construído na Finlândia e tem bandeira das Bahamas. O capitão é norueguês, mas há tripulantes de outras 70 nacionalidades. Os passsageiros, sabe-se lá; vêm de toda a parte, mas com um mesmo objectivo: celebrar. Todos os dias, um “Happy Birthday” pendurado na porta dum quarto denunciava um aniversariante. Um grupo de convidados vestido do mesmo branco que a noiva desfilou três dias pelo navio comemorando um casamento. Outros estavam em lua-de-mel, faziam anos de casados, festejavam a licenciatura do filho, a reunião dos antigos colegas de liceu, et cetera. Celebração, pois, é a palavra-chave que ocorre ao diarista no regresso a casa, com tudo o que ela implica: um ambiente de euforia permanente, a simpatia e a disponibilidade que os rostos arquivam o resto do ano nas caves de si, um navio que cruza as águas caribenhas como uma bolha de ilusão onde não entram rotinas nem urgências.
Os cruzeiros não são baratos, mas, aparentemente, são a garantia de qualquer coisa sem preço: estar longe. Num mundo onde cada vez mais parecemos legalmente obrigados a atender o telefone e responder a emails onde e quando quer que estejamos, “longe” significa a libertação instantânea e incondicional de tudo isso. A meio do mar, muitas vezes não há rede telefónica nem internet – e, quando há, ninguém precisa de o saber. Ao meio do mar, não chegam jornais e quem ligar a televisão fá-lo à sua responsabilidade. Ao meio do mar, não chegam notícias nem a parafernália da publicidade, de modo que o que vem à superfície são as pessoas – as pessoas e o agora.
Claro, dir-me-ão, também podemos desligar o fio do mundo num esconderijo remoto no interior do país. Esse seria, aliás, o meu conselho médico: exílios regulares em aldeias e casas de campo. Mas aí não há restaurantes de autor, bares de jazz, clubes de comédia, cinemas e teatros, piscinas e jacuzzis, ginásio e pista de jogging, spa e casino, lojas, salas de jogos, biblioteca e discotecas, paredes de escala e simuladores de surf, até um jardim em pleno mar com plantas exóticas e recantos de leitura (algo, porventura, ainda mais exótico) e, sobretudo, uma porta principal que, a cada manhã, se abre para um porto diferente. Não. O “Oasis” é o exílio com estilo. Não se pode fazer sempre, mas pode fazer-se uma vez na vida – para celebrar a vida inteira.
Mas, chegado ontem a casa (um dia antes da minha mala que, aparentemente, decidiu ficar mais 24 horas algures entre Miami e Madrid), o que a memória guarda são, acima de tudo, as pessoas. Mais do que os sete bairros do “Oasis”, mais do que as palmeiras e água cristalina das Caraíbas, são as histórias das pessoas que trazemos na bagagem e que nenhum controlo alfandegário pode retardar ou obstruir.
Theo, bahamiano que faz verdadeiro stand up comedy enquanto guia os turistas no ferry que liga Nassau a Paradise Island. O taxista que canta repetidamente “Twist & Shout” como a última novidade do mundo da música enquanto conduz a sua carrinha escolar adaptada ao turismo pelas colinas de St. Thomas. Nick Maley que, depois de dar vida ao master Yoda da “Guerra das Estrelas”, se retirou para as piña coladas das praias de St. Marteen. Morgan, o empregado de mesa que, no “Oasis”, continua a rondar a sua Jamaica natal, enquanto equilibra pratos de sobremesa na cabeça e sonha ser capitão. Ronny, o filipino que há nove anos trata dos quartos e questões burocráticas dos seus passageiros e que espera lá estar ainda, daqui a dez anos, para nos receber numa próxima viagem. Aquela pequena amostra do mundo em que vivemos que decidiu tirar a mesma semana de vida para celebrar a bordo do mesmo navio e cujos nomes nunca saberemos. Os noivos e convidados do interminável casamento branco. Os bebés nos seus carrinhos e os homens e mulheres com quem se cruzavam e que determinaram que as cadeiras de rodas não lhes roubariam o prazer de viver. Os loucos que faziam slide sobre o navio. O misterioso Robinson Crusoe que fumava ininterruptamente no antepenúltimo deck enquanto todos se banhavam na piscina e preparavam para as noites de gala. As mulheres de vestido de noite e salto alto que subiam nos mesmo elevadores com homens de roupão e chinelos a caminho do jacuzzi. Os viciados do casino, os heróis da pista de jogging, Bruce Gordon e o seu quarteto jazz, Simeon e as melhores piadas do Caribe. E por aí afora, até chegarmos aos oito mil habitantes daquele país temporário onde tudo quanto nos liga ao tempo é uma placa indicando o dia da semana nos elevadores, trocada manualmente a cada meia-noite dum fuso horário fictício.
Regressado a Lisboa, estranho que o elevador do escritório não me informe do facto de ser segunda-feira e não haver mar do lado de lá da varanda. Os calções de banho voltam para a gaveta por mais um trimestre. Cá fora, fica estendida a certeza de que, uma vez por outra, todos merecemos celebrar a vida a bordo da lonjura.
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