Há filmes que não nos largam. Mais do que o filme em si, é a história que “Dreams of a Life” reconstrói que nos põe a matutar, e a história fala de Joyce Vincent Carol, uma mulher de 38 anos que faleceu em 2003, presume-se de causas naturais, e cujo corpo apenas foi encontrado quase três anos mais tarde no seu apartamento londrino. As cartas acumulavam-se no hall de entrada, enquanto na sala a televisão manteve-se ligada ao longo dos anos. Foi descoberta porque tinha vários meses de renda em atraso. Nem a família nem os amigos tinham comunicado o seu desaparecimento.
No entanto, esta história foge aos padrões habituais deste tipo de notícias: Joyce Carol não era uma idosa esquecida pela família, não tinha problemas psíquicos, dependência de álcool ou drogas. As pessoas que a conheciam recordam-se dela como alguém cheio de vida e ambiciosa, uma vida social e profissional intensa. Tinha quatro irmãs, que chegaram a contratar um detetive privado para a encontrar. Teve namorados, um grupo de amigos com quem partilhou casas, colegas de trabalho com quem ia beber uma cerveja. Era muito bonita, dizem todos, e imaginavam-na como alguém que tinha concretizado os seus sonhos. Estranhamente, algo em nós não associa a beleza a uma vida triste e solitária.
Não explorando a morbidez do tema, o filme pretende sobretudo reconstituir a vida de Joyce Carol, dar uma vida e um nome a alguém que tinha deixado de ser notícia. Alguém que se arriscava a tornar-se um mito urbano.
O filme também não aponta dedos a pretensos culpados, apenas expõe a facilidade com que alguém cai no esquecimento de uma cidade. Apesar de vivermos na chamada era da comunicação. Mas essa era está também associada a uma enorme mobilidade – temos a enorme vantagem de mudar facilmente de bairro, de cidade, de país por um novo emprego, uma nova paisagem, uma nova relação. Apesar de termos a oportunidade de conhecer muitas pessoas num novo ambiente e sermos convidados para jantares, cinemas e cervejas a falar sobre a nossa vida, é natural que os laços precisem de tempo para solidificar. Até então, cada um de nós apenas mostra os sorrisos. Tal como no Facebook. Espalhamos no nosso mural as fotografias das férias de daiquiris na mão, não as tristezas de segunda-feira.
Essas são reservadas à família e aos amigos. Mas também estes estão por vezes apanhados naquilo que se chama vida. Todos percebemos porque por vezes se adiam telefonemas e marcam encontros para um dia destes, que serão convertidos em meses e por vezes alguns anos. Mas a linha pode tornar-se ténue.
No caso de Joyce, provavelmente terá sido também o orgulho que a fez retrair-se. Dos seus últimos anos sabe-se apenas que esteve num refúgio para vítimas de violência doméstica, após ter abandonado o seu último emprego. E a partir daí ter-se-á isolado, se calhar com vergonha da sua nova situação.
Uma amiga a viver em Londres há três anos recusou-se a ver o filme. Apesar de conhecer muita gente, também ela teve dificuldade em indicar no emprego a pessoa mais próxima a contactar em caso de urgência. Também por isso o filme não me larga.
Eleanor Rigby died in the church and was buried along with her name
Nobody came
All the lonely people, where do they all come from?
All the lonely people, where do they all belong?
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.