É um tempo que parece agora absurdamente distante. Um tempo anterior à incontinência televisiva dos concursos de talentos, quando o adolescente mais delirante não sonhava ser conhecido para lá do final da rua.
Nesse tempo de dois canais, anterior à fnac, à playstation e às boxes, às guerras de anúncios entre supermercados com pessoas pretensamente normais, à internet, aos telefones móveis e aos comments, a interactividade com os meios de comunicação resumia-se aos discos pedidos e o karaoke irrompeu como inimaginável vanguarda da tecnologia.
Nesse tempo, dizia – atenção que isto não é exactamente nostalgia – não havia grande escolha, mas, como sempre, enterrados no presente até ao pescoço, não éramos então capazes de o perceber.
É a recordação desses dias que volta com a notícia da morte de Whitney Houston, acidente há tanto à espera de acontecer (pelo menos desde que um tablóide revelou uma foto da casa de banho da cantora que me fez pensar que o tipo que vivia então comigo era, afinal, uma fada do lar).
Era o princípio dos anos 90, em que um só indivíduo conseguia dominar as listas de venda de discos durante mais de um ano e ainda acumular com recordes de bilheteira nos cinemas. Em que Fernando Pereira era o grande artista português e Kevin Costner o equivalente fin de siècle de George Clooney (eu avisei que isto não era um exercício nostálgico).
Nesses dias, parece-me agora, havia uma grandeza qualquer nos serões de karaoke. Deprimentes e épicos como só os serões de karaoke conseguem ser. Havia uma inconsciência de si que fazia com que todos fossem um pouco mais espontâneos, ridículos e comoventes. Ninguém tinha concorrido aos “Ídolos”. Ninguém tinha cinco mil amigos no facebook. Havia poucas lojas de marca. Uma pessoa avançava sem rede, com o pullover do avô e os ténis de imitação, as calças reviradas para cima e o cabelo à jogador da segunda B, e subia ao palco para cantar o “Blaze of Glory”. E isso era o auge. Isso era o momentum. Isso era o tudo ou nada.
Com sorte, passávamos com suficiente. Se não se tropeçasse no fio do micro nem distribuísse perdigotos pela primeira fila, se a jovem que queríamos conquistar não tivesse saído nesse preciso momento acompanhada dum jovem, já teria sido memorável.
Depois, porém, vinha sempre uma garota. Uma moça em que nunca tínhamos reparado, ar confiante, celebrada em antecipação pelas amigas, que chegava lá, entrava numa comunicação cósmica com que a Whitney e lá ia daquilo. “I Will Always Love You” ou “The Greatest Love Of All” ou qualquer coisa com “Love” e muito fôlego.
A sala ia abaixo, Whitney Houston deixava o corpo da jovem que voltava para o seu lugar no anonimato e já ninguém se lembrava do nosso “Blaze of Glory”.
Agora, sabendo das notícias, só consigo recordar-me disto. Do pullover do avô. Dos dois canais. Das Whitneys do fim da rua.
Pergunto-me se lamentarão não ter havido, no tempo delas, tanto concurso de talento. Ou se, ilusão por ilusão, continuam a preferir os serões de karaoke, onde ninguém sonha saltar para o mundo de Sinatra, mas fazer precisamente o contrário. Trazer Sinatra para ali, entre minis e a província, canções do Tony Carreira e gente normal que compra nos supermercados promovidos por quem a tenta, sem sucesso, imitar.
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