Não há escriba que meia volta não escreva sobre a falta de assunto. Quando isso acontece, o bom do cidadão desfaz-se em desculpas e, num registo mais ou menos irónico, mais ou menos auto-complacente, faz desfilar uns quantos assuntos sobre os quais poderia discorrer mas resolve deixá-los para outra altura. A crise da sociedade ocidental, o número de ogivas nucleares do Paquistão, o euro, a reforma do sistema judicial, o número de desempregados, temas que podem mudar radicalmente o nosso futuro. Possíveis importantes reflexões, digo eu.
Se o escriba não for um cronista, o problema não é grave. Ele há dias. Um javali ao lume, uma febre irritante, uma tentativa para deixar de fumar, aquela falta de paciência mortal que nos faz estar um dia inteiro a olhar para uma mosca. Ora valha-me Deus, os cortadores de carnes verdes também têm os seus problemas, porque diabo um tipo que escreve para lhe poder comprar os bifes não pode ter os seus achaques?
Num cronista, a falta de assunto é coisa para muito maior preocupação. O cronista vive de roubar histórias à porteira, ao empregado do café, ao taxista. Depende da sua vontade de estar acordado, de olhar para um anúncio num jornal e ver uma história, de passar por uma rua e de ver que há um grupo excursionista que se chama “Vai tu”. O cronista quando não tem uma história está doente. Não daquelas doenças de médico e symposium, tem uma doença profissional que só ele pode curar. O cronista deixou-se levar pelos assuntos aparentemente muitíssimo importantes e esqueceu-se da importância do quotidiano para o seu mister. Pior, o cronista está esquecido dum segredo que só a ele foi revelado: não há nada mais importante no mundo que o quotidiano.
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