Ninguém me disse que Toy Story 3 era um filme maravilhoso. Foi o 3D, como grande factor de diferenciação, que mediatizou a estreia do filme, o que não me pareceu interessante. Se eu fosse distribuidor do filme diria "atenção, eis um dos mais belos filmes sobre a condição humana". Bem, em rigor, todos os filmes são sobre a condição humana. No entanto Toy Story 3 leva-nos para outro lugar, uma espécie de Neverland de onde, um dia, saímos, forçosamente, e que deixámos esquecida num baú. Dentro desse baú um outro mundo que imaginámos, que criámos e construímos com as pegadas do crescimento, passo a passo.
Deixei de brincar muito tarde. Lembro-me que os meus amigos já iam ao café e eu ainda jogava às escondidas na rua. No meu quarto, duas prateleiras de carrinhos da Majorette e da Matchbox. Sempre preferi os primeiros, talvez por serem carros normais, que via na rua. Havia mais realidade nas brincadeiras dentro de portas do que fantasia. Numa mochila verde, ao lado da cama, o resto dos brinquedos diários: playmobil's e gi joe's. Centenas de bonecos. Os Joe's eram maravilhosos, cabiam bem na realidade Playmobil e tinham muito mais mobilidade. Se fosse preciso simular um jogo de futebol, então...
Os bonecos estavam separados por grupos, independentemente da espécie, numa lógica mais maniqueísta. O território dividia-se entre o tapete, a cama e o chão. O tapete era a cidade principal, a cama a montanha ocupada por rebeldes e o mar o sítio das piratarias e do contrabando. Via imensa televisão. A soberania existia, assim como um poder político para a sustentar. Havia polícia, serviços e até um advogado. Todos tinham nome. Esta foi uma brincadeira contínua, que durou anos e que se foi, naturalmente, aperfeiçoando na sua própria narrativa. Ela representava, sobretudo, o meu próprio crescimento e a forma como eu olhava o mundo.
Quando mudámos de casa, a mochila foi directamente para a cave, dentro de um baú com os carrinhos e outros brinquedos. Foi um dia pesado em que percebi que tinha de crescer. Ter de crescer, por obrigação, é quase um crime. Mas, ninguém quer ser um puto para sempre, pelo menos aos olhos dos outros. Era essa a maravilha do quarto fechado: um mundo só para nós, que podíamos explorar sem olhares reprovadores e ridicularizadores. Com os bonecos definimos perfeitamente quem é bom e quem é mau. Temos essa certeza e nunca nos desiludimos. Inventamos o amor e somos felizes com o pormenores da nossa imaginação.
Ao ver Toy Story 3 recuperei, entre muitas outras coisas, um miúdo que estava dentro de mim, escondido; um miúdo que resolveu chorar com saudades de si mesmo, da sua espontaneidade e da sua dedicação a uma coisa simples como um objecto de plástico. Há coisas que nunca deveríamos esquecer.
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