Modificado daqui
Espero não levantar suspeitas se vos dissser que lavar roupa é uma rotina com uma periodicidade suficientemente espraiada para não se tornar entediante. Tem também tempos de espera que servem a leitura. E há um elemento de regeneração no processo, o que me enche de esperança. Com a roupa lavada parece que tudo volta a valer a pena e não ficaria espantado se me dissessem que deixar os antidepressivos passa muito pela escolha de um bom amaciador.
Mas o lugar e o tempo também contam. Tenho ainda presente o efeito quase hipnótico das revoluções dos tambores das máquinas de uma lavandaria parisiense, algumas conversas que por lá troquei com os outros expatriados, a força da natureza que era a mulher com a missão de limpar o chão e fechar a porta, e a série de vezes em que o tal encontro romântico acidental na lavandaria não se concretizou. Aqui em Nova Iorque [escrevi isto em 2007] há menos convívio, porque a lavandaria é na cave, e menos ansiedade, porque depressa aprendemos a esperar pouco dos vizinhos. Não me dou com ninguém e os instantes de alguma intimidade só ocorrem por acidente. Como quando trouxe um babete perdido na minha trouxa de roupa. Ou quando descobri uma meia minúscula entre os lençóis. Constatei então que a roupa de bebé tem especial vocação para fugir de casa e levantei uma hipótese: são os próprios bebés a colocar, com perícia, velcro nas suas peças de roupa, fazendo bandeiras de sinalização dos seus babetes e garrafas com mensagem das suas delicadas peúgas. Azuis e cor-de-rosa. Menino ou menina, todos se devem aborrecer com o mimo resultante do excesso de desejo acumulado de parentalidade que caracteriza os casais contemporâneos. De resto, este texto é uma sublimação esse desejo de prole, para evitar ser baleado no Bronx no momento em que tento raptar um pretinho. Mas outros menos cuidadosos do que eu, ou sem vagar para a escrita, incorrem mesmo em comportamentos moralmente dúbios.
Encontrei um exemplo inesperado há uns dias, precisamente quando deixava a lavandaria. Num dos placards de anúncios, alguém anunciava (traduzo): "Adopção: casal sem filhos pretende adoptar uma criança com quem partilhar um futuro radioso. Pagamos as despesas médicas e legais. Vamo-nos ajudar mutuamente". Não sou ingénuo ao ponto de ignorar aquilo que algumas pessoas estão dispostas a propor para conseguir uma criança e o que outros estão dispostos a aceitar para ganhar umas massas. Porém, na minha inocência, nunca pensei poder ver tal anúncio num prédio de classe média de Manhattan. Não imagino nenhum dos meus vizinhos disposto a conceber uma criança por caridade ou para pagar as contas. Enfim, o mais provável é tratar-se de um anúncio para as amas e mulheres-a-dias. Ou então é aquilo a que os técnicos chamam - creio - uma campanha massificada. O certo é que me incomodou a hipocrisia ou o pragmatismo daquele "ajudar". Cheguei até a ter saudades dos tambores das máquinas de Paris, daquela desaceleração que parece um rewind e me transportava para os dias em que a peer pressure não era tão literalmente darwiniana. Talvez por isso tivesse aberto o frasco do amaciador já no elevador, encostado o meu nariz e inspirado com alguma intensidade. Um fulano que entrou nesse preciso momento lançou-me um olhar reprovador, mas uma das vantagens de viver num prédio no estrangeiro sem me dar com os vizinhos é a total ausência de vergonha no elevador, nos corredores, no átrio, nas escadas e nos patamares.
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