(Tem sido muita coisa junta - entre novas empreitadas literárias e colaborações dispersas - e por isso não consigo escrever esta semana uma croniqueta. Para a semana volto a abrir o Word para o embate. Enquanto isso não acontece, publico aqui um texto editado há uns mesitos na "Ler" sobre Onésimo Teotónio Almeida que gostava de partilhar com os sinusíticos leitores).
O tempo em Lisboa está um pouco como o estado da Nação: pouco convidativo e manhoso. Vou ter com Onésimo Teotónio Almeida ao Hotel Dom Carlos, onde está hospedado, para com ele conversar a propósito do livro “Onésimo, Português Sem Filtro – Uma Antologia”, que compila textos seus de obras várias e de diferentes géneros – da crónica ao conto. Conta-me como é que surgiu a ideia do volume: “O livro reúne uma selecção de crónicas, diacrónicas, estórias ou contos e prosemas de cinco livros e resultou de um simpaticamente insistente convite da Cristina Ovídio, do Clube do Autor, que se ofereceu para fazer ela mesmo a selecção”. Na altura da proposta, Onésimo conheceu duas pessoas que, por coincidência, sem se conhecerem, se puseram a ler os seus livros. “Gente culta e muito lida, jovem mas amadurecida, o filósofo João Brás e a médica Ana Bernardo, e ocorreu-me propor à editora que a antologia fosse feita também com as sugestões deles. Foi, aliás, quase só esse o meu contributo, para além de um breve prefácio. Nem o título do livro é meu”. Pergunto-lhe como é que lidou com este olhar quase virgem sobre as suas intimidades. Responde assim, franca e espontaneamente: “Olhe, hoje são amigos. Pode parecer tratar-se de amigos feitos à pressa e não deve haver maneira de fugir a esse labéu, mas a verdade é que são amigos que muito prezo. Portanto, de três leitores fiz três amigos. Nos dias que correm, é uma taluda”.
A edição é uma espécie de Bíblia Onésimiana no registo não académico e não teórico. Ou por outra: está aqui o Onésimo da escrita, como ele próprio um dia apelidou, “em mangas de camisa”. O Onésimo dos textos bem humorados sobre Portugal e os portugueses, o Onésimo das prosas poéticas e intimistas, o Onésimo das ficções sobre a L(USA)lândia, o Onésimo que tem sempre uma nova história para contar com o seu nome. Conta-me três. Fico com uma, menos por avareza do que por falta de espaço: “Na sessão de lançamento do livro no Grémio Literário, o Miguel Real, que escreveu um amabilíssimo posfácio sem eu ter que lhe pagar nada por adjectivo, usou várias vezes o palavrão ‘onesimiano’. Todavia na sessão pronunciou-o sempre como ‘onemesiano’. É frequente. Por causa de mim frequentemente insultam o meu querido Nemésio”. A segunda aconteceu num programa da TVI. “Eu aguardava na recepção que me mandassem subir para uma entrevista com o João Paulo Sacadura, no seu ‘Livraria Ideal’, quando chegou uma doçura de moça que com sotaque nortenho me perguntou: É o senhor Osónimo?”.
Osónimo. Osínoro. Donésimo. Já foi chamado de tudo. Brinca com o assunto, por uma vocação, assumida desde muito cedo, para não sucumbir ao peso das seriedades excessivas: “Quando era jovem tinha dificuldade em conter o riso em situações sérias na altura em que via as pessoas assumirem posições corporais e terem gestos muito afectados e nada naturais porque na nossa cultura a seriedade exige um teatro corporal”. Cedo percebeu que para respirar não é preciso usar fraque: “Eu achava essas posturas ridículas porque tenho uma tendência natural para agir com naturalidade”.
Naturalidade é uma característica primordial em Onésimo. Não se pense que é característica única e que resume por completo o autor e a figura. Ouço-o falar com informalidade naquele hall de hotel e volto a achar o que sempre achei. O autor de livros tão diferentes como “Que Nome é Esse, ó Nézimo?” e “De Marx a Darwin – A Desconfiança das Ideologias” é um peso pesado que respira com leveza. Se quisermos, um peso pesado leve. Funde a seriedade e o rigor das universidades da profissão e da vida e a leveza de quem há muito topou que a – abre aspas - existência não é para levar demasiado a peito.
Miguel Real, no posfácio, sublinhou que é um “homem dividido, do ponto de vista sentimental, entre a América da sua realização e o Portugal da sua formação". E entre uma escrita académica, fruto de um pensamento mais balizado e solene, e uma escrita descomplexada na qual pode exercer a ironia e o sarcasmo. Aceita isso ou vai já interpor uma acção judicial? “Dividido, não sei. Prefiro pensar que sou ‘somado’. Tenho os dois lados em mim e sinto-me bem. Há facetas boas nas duas vertentes e convivo com elas sem drama. O mesmo se diga relativamente à escrita propriamente académica e à crónica. Estou à vontade na praia e num jantar solene, apesar de a indumentária ser mais apertada”. Sobre a ideia de recorrer aos tribunais, responde desta forma: “Sim. Pelo menos devia. Como é possível ler tanto e fazer um retrato que apanha em cheio os traços de fundo como ele fez a meu respeito? Ele anda a enganar as pessoas fazendo-se passar por autor de tanto livro e tanto escrito quando isso é impossível porque estamos sempre a encontrá-lo por aqui e por ali a fazer palestras e sabemos que viaja imenso. Suspeito por isso que se trata mesmo de ludíbrio”. Ainda com a mão na massa do humor, remata com a seguinte conclusão, jogando com o pseudónimo e quem está por detrás dele: “O Miguel Real é a personagem pública que fica com a fama, mas quando ele sai deixa em casa o Luís Martins a trabalhar como um mouro. E esse sim é que escreve tudo”.
Ainda não havíamos falado da questão da terra açoriana, elemento fundador e determinante da sua identidade. Para onde quer que vá, leva consigo os Açores onde nasceu, ainda hoje bem vivos em si - nas histórias, nos amigos, no mar da infância. Num dos seus prosemas mais conhecidos, "Prosema ao Mar", confessa: "fora da vista de água eu sinto que me afogo". Pergunto-lhe se é mesmo forte essa apetência marítima ou se a constante evocação dos mares representa um cliché que os ilhéus têm de levar a sério se não ninguém os considera. A observação chega sem espuma: “Passei uns dias em Março nos magníficos desertos de Utah e fiquei deslumbrado. É verdade que avistava com frequência o rio Colorado. Já me tinha deslumbrado em tempos com o Grand Canyon. Mas admito que a prolongada falta de mar não me faz bem à saúde. Será cliché? Pode ser. O teste seria passar tempo de mais longe do mar e isso ainda não consegui fazer. Talvez um dia, quando não puder andar. Nessa altura respondo-lhe”.
O hotel até aí calmo torna-se subitamente ruidoso por causa da conversa entre uma guia com uma voz demasiado entusiasmada e dois turistas. O que nos transforma subitamente noutro tipo de seres insulares, como quase todos nós de vez em quando nas nossas vidinhas de todos os dias: almas rodeadas de ruído. A situação sugere-lhe um comentário: “Particularmente quem vive nas grandes cidades, como Lisboa, que adoro visitar, o barulho cansa-me. Mas Portugal tem no Alentejo profundo, na Beira, em recantos do Minho e Trás-os-Montes, nos Açores, em particular nas ilhas menos povoadas, espaços ideais de paz. Por mim, privilegio esses lugares com sacos de livros para ouvir os outros em silêncio”.
Onésimo conhece tantas histórias e anedotas que podíamos pensar que as colecciona em casa, numa pasta gigante – que um dia deixará à descendência desnorteada, sem saber o que fazer com tanto papel e papelinho. Nega a sugestão e explica porquê: “Eu não colecciono anedotas. Já o fiz e desisti quando em 1970, em Lisboa, me roubaram uma mala onde estava um ficheiro com cerca de duas mil. O que acontece é que eu ouço-as e, na conversa, por um processo natural de associação, recordo-me delas”. No fundo tudo não passa de um fascínio pelo humano: “Acho fascinante a vida e os tipos humanos que ela permite. Gosto de estórias por serem algo fora do comum, do cinzento, do banal. A minha sorte é poder lembrar-me delas sem esforço. E conto-as por impulso natural, que muitos considerarão – e justamente – autêntico vício”.
E o vício lá veio. Quase no final da conversa, Onésimo exerce essa generosa pulsão de improvisado narrador. Provavelmente empurrado pelo tempo melancólico, faço-lhe uma pergunta meio nonsense de aprendiz de pastelaria, como quem anda à procura de uma luzinha num dia cinzento: “Qual é o sentido da vida, Onésimo?”. Sem querer, o professor e cronista põe-me no lugar, sublinhando que é uma pergunta frequente dos seus alunos do curso sobre A Formação das Mundividências. Fico caladinho e ouço: “Porque muitos alunos se matriculam no curso esperando respostas para perguntas semelhantes a essa sua, incluo entre as leituras do programa um excerto da autobiografia de Tolstoi precisamente sobre o sentido da vida. Eles debatem-no durante uma aula e, no final, eu digo-lhes: ‘Esta leitura tem um fim pedagógico’”. Toma lá que já almoçaste. A história, essa, tem, de forma visível, a assinatura de quem a conta: “Um ocidental foi para o Oriente à procura de um famoso guru. Passou dificuldades sérias no percurso, sofreu acidentes vários na escalada de uma montanha onde lhe indicaram vivia o guru. Ia mesmo perdendo a vida, mas lá chegou ao fim de meses à presença do dito guru. Fez-lhe então a pergunta: ‘Qual é o sentido da existência?’. E o guru, muito serenamente: ‘O sentido da existência é uma chávena de chá’. O ocidental não conseguiu esconder o seu desapontamento: ‘Então eu venho de tão longe atraído pela sua fama, gasto tempo e dinheiro, arrisco mesmo a minha vida para chegar até junto de si e lhe fazer a grande pergunta humana para ouvir em resposta que afinal o sentido da vida é uma chávena de chá?!’. E o guru, sem perder a serenidade: ‘Então o sentido da vida talvez não seja uma chávena de chá’”.
Talvez não, talvez não. A única certeza, pelo menos aquela que podemos assegurar no instante é a de que a conversa entre a guia e os turistas aumenta, misteriosamente, de tom – já se gritam localidades e destinos como se não houvesse amanhã e quem sabe século seguinte. Digo-lhe de megafone imaginário na mão: “Às vezes dá vontade de dizer ou escrever: ‘Eu até sei qual o sentido da vida mas não o consigo ouvir com este ruído todo’”. Onésimo Teotónio Almeida, português sem filtro e com um sentido apurado da contingência disto tudo, remata o bate-papo com uma nota meio a sério meio a brincar, conhecida especialidade da casa: “O ruído tem uma vantagem: não nos deixa ouvir as respostas dos outros e assim não temos outro remédio senão contentarmo-nos com a nossa”.
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