No Domingo saí à tarde para ir à FNAC e andava às voltas para parar o carro quando encontrei um lugar graças às sinalefas de um arrumador.
Estava um céu tremendo de azul que a janada deitada no muro do metro do Chiado não viu, tal como os turistas que parlapeavam no seu chinês endinheirado. Comprei o livrinho que queria comprar, o jornal na Bertrand, evitei olhar de novo o céu porque a janada se interpunha no campo de visão e só ao chegar ao carro percebi que não era um arrumador e não eram sinalefas.
Era uma arrumadora e fazia uma estranha e suave dança com os braços para chamar a atenção dos automobilistas.
Pensei: há uma piada aqui, qualquer coisa a ver com a evolução da sociedade portuguesa, em como mesmo a arrumar carros as mulheres exibem um maior decoro higiénico, uma certa leveza e graça de gestos. Pensei: escrever 500 caracteres sobre a necessidade premente de estabelecer quotas femininas para a profissão de arrumador (arrumadora, arrumatriz, não sei). Há uma piada aqui.
Eu penso estas coisas. O António Barreto pensa outras. Ele pensa que alguns dos direitos dos alunos dos liceus, como "serem informados sobre os critérios de avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas" são "absurdos".
Depois leio na net que a águia Vitória, símbolo do Benfica, fugiu, desapareceu - antes ou depois do jogo - e dou por mim a pensar que talvez o mesmo tenha acontecido à lucidez do António Barreto (que eu tanto respeitava).
Ainda depois li um post do maradona e encontrei uma frase que, fico a pensar, gostava de ter escrito: "Cometi a liberdade".
Por norma escreve-se "Tomei" mas aquele "Cometi" faz sentido.
Isto do livre arbítrio que nos ensinavam nos liceus sossegados onde não havia telemóveis tem-me parecido sobrevalorizado. Se creio em alguma coisa (e creio que creio pouco) é que não dominamos o nosso pequeno cérebro, ele é que nos domina. Não acredito - há muito - na Liberdade.
Não me refiro a essa, fácil, de votos e eleições e não haver tanques nas ruas e poder pintar o cabelo de azul. Essa é fácil.
Refiro-me à Liberdade que alguns têm, ou sentem que têm e ainda por cima usam. A Liberdade de dizer que os direitos dos alunos dos liceus de "serem informados sobre os critérios de avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas" são "absurdos".
A Liberdade de dizerem - como hoje um professor (ou um legislador, não me ocorre) no Prós e Contras, a propósito dessa novidade que é "agora" haver alunos que tratam o professor por "tu" - que "é preciso trazer a autoridade para as salas de aula porque sem escola não há sociedade", sem por um segundo parar para pensar que a noção de autoridade mudou muito de Aristóteles até hoje, sem pensar que sem sociedade perdemos a escola e que uma não existe sem outra.
Esta Liberdade - preocupa-me. Esta Liberdade dos quem têm acesso à informação e ao conhecimento serem os primeiros a abdicar do raciocínio lógico, da tentativa de nos colocarmos no lugar do Outro (qualquer outro), apenas para auto-justificar uma biografia mais ou menos amarga, a sua classe mais ou menos protegida, esta Liberdade tão apregoada - assusta-me.
Não sei destas coisas, a minha vida não é isto. Escorrego em camisolas de lã que guardo da infância, tropeço num brinquedo de um puto de três anos, sou tão alheio à desgraça alheia quanto os outros a mim, não me apetece aturar esta gente cuja preocupação com o estado do mundo toma vez após vez a forma de decalaração implacável.
O meu mundo, nem mais nem menos simples, não tem muitas Liberdades. Reduz-se a cometer a liberdade de não atender a porta não vá aparecer-me o António Barreto de dedo em riste. A cometer a liberddade de ter o pudor de não atirar deturpações do mundo apenas para marcar posição.
Cometo apenas pequenas e irrisórias liberdades: a de ler um, dois versos que me mandam estar quieto e não escolher nada.
E cometo a liberdade de transcrever esses versos que resumem o meu minúsculo medíocre mundinho sem crenças na Liberdade:
"Amanhã será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar.
Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso"
Chama-se Espanta-Espíritos, é de um Poeta que ninguém lê - nem costuma cometer ou exercer Liberdades de espécie alguma - chamado Rui Pires Cabral, e está incluído num livro chamado "Capitais da Solidão".
Olho para esta gente toda a bramir sentenças, acirrados pela Liberdade dos outros pensarem diferente, retesados na sua incapacidade de olhar para o lado (ou para dentro), perco toda a vontade de fazer piadas sobre arrumadoras e penso:
capital da solidão.
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