Há uma relação intrínseca entre o boémio e a sua barba. O boémio usa barba de três dias. Até ao último minuto dessas 72 horas, é considerado barba feita. Mesmo que dê para arear panelas, acender fósforos, lixar caixilhos com ela. Acima dos três dias, sobe-se de nível: de boémio passa-se a professor Fernando Carvalho Rodrigues, Pai Natal, roady dos ZZ Top. Por esta ordem.
O boémio não faz isto por estilo, dar um aspecto negligé, imitar o Special One. Ainda Mourinho dava aulas de educação física na C+S do Portinho da Arrábida, já o boémio apregoava o look presidiário-chic. Fá-lo porque só uma a cada três manhãs salta da cama em tempo útil. Até lá, pode ser ameaçado com despedimentos, divórcios, ter a tia Natália a perguntar em lágrimas por que não usa a gillette mach 3 que lhe ofereceu pelo Natal em plena reunião de sócios da empresa. Ele não se comove.
A barbinha – diminutivo, note-se, muito másculo – diz com as olheiras, o cabelo despenteado que resta, o feitio refilão, revolucionário com a segurança social em dia, a inócua discordância com a normalidade. E é como um par de botas da tropa, as calças de ganga, um casaco de cabedal, uma edição de bolso do Bukowski: é parte da armadura urbana dentro da qual se esconde a vulnerabilidade do desencontrado.
E há mais. O boémio considera uma franca paneleirice o negócio em torno deste assunto. Antigamente, havia as gillettes com lâmina única, com um corte ao centro que se encaixava no cabo, after-shaves desenvolvidos em laboratório por pirómanos e uns lápis manhosos que se espetavam nos cortes e duravam uma vida. Depois e de súbito, vieram as lâmina-gémeas, as três lâminas flexíveis que se adaptavam ao rosto, as cinco daquela que, agora, anunciam o Henry, o Federer e o Tiger Woods. As brauns e as philishaves, os hidratantes, os esfoliantes, os cremes para antes e depois. O tanas. O homem que é homem – e o boémio é um – só quer fazer a barba, não ficar com a cara mais macia que o rabinho dum bebé. E quer viajar sem pagar excesso de bagagem e empenhar menos que o PIB de Andorra em despesas de higiene mensais. E, sobretudo, ele reteve a informação fundamental: amanhã, a barba vai crescer outra vez; portanto, para quê ter todo o arsenal dum samurai de roda dela?
A barba por fazer é, finalmente, a aproximação possível do boémio ao herói de aventuras clássico. Como poderia ele chegar a convencer uma mulher de ter qualquer coisa de rebelde sem causa, de Indiana Jones dos pequeninos, se andasse com a cara no lastimável estado dum promissor bancário, dum bem sucedido corrector da bolsa que arrisca diariamente a vida num novíssimo jogo da playstation?
[Crónica originalmente publicada em 2008 na revista Atlântico e aqui republicada e retocada por se achar o autor carcomidinho de trabalho.]
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