Os pneus rodam pelo calçadão e a música nos auscultadores transforma o passeio num videoclip. Tudo isto podia ser um lugar-comum musicado, um anúncio dos Jogos Olímpicos, com meninas correndo, pedalando e patinando junto ao mar, uma melodia de beleza em movimento e os efeitos especiais da poeira da maresia, dos morros como pano de fundo, da humidade escorrendo das árvores. Começou a primavera a sul do trópico do umbigo do planeta, há gente no areal a meio da manhã, uma água de coco custa quatro reais (‘tá cara pra cacete esta cidade), os painéis publicitários anunciam 24 graus, esta galera anda bem-disposta, de peito feito, salários altos (inflação também) em contra ciclo anímico com a Europa. E isso acentua a sensação de videoclip, uma vez que acabei de chegar ao Rio de Janeiro depois de cruzar, nos últimos anos, a espessura e o ruído da crise portuguesa nos telejornais e nas manifestações e nas conversas de pastelaria. Um dia estou numa cidade que amo – Lisboa –, inquieto como os meus compatriotas, e no dia seguinte estou numa cidade que desejo – Rio – a pedalar numa bicicleta emprestada, MPB sintonizada nos headphones, aproveitando a incredulidade do momento.
Voltar a andar de bicicleta todos os dias, como nas tardes das férias grandes, longas de luz e de eventos heróicos, permitiu-me viver num lugar afastado da crise, recuperando uma liberdade apenas conseguida durantes aqueles três meses de verão, sem escola ou TPC, quando uma bicicleta nos bastava para ir a todo o lado. Nessas aventuras em duas rodas só interessava o entusiasmo das descidas arriscadas, a exploração de novos caminhos, o pneu traseiro derrapando sobre a terra. É assim que me sinto nestes primeiros dias no Rio de Janeiro.
Não esqueço o lugar de onde venho – aliás, sempre que alguém não compreende o que digo e questiona “oi?”, recordo-me que sou português de fonética fodida e vogais fechadas. Não esqueço o que se passa em Portugal. Mas não ser contaminado pela electricidade mediática, não debater o Alberto João Jardim num jantar ou comentar o estilo oratório do ministro das Finanças, é tão bom como andar de bicicleta num videoclip.
Saio da praia e entro nas ruas, aproveitando a largura dos passeios para fazer trajectórias de videojogo ao ritmo da música, desviando-me das pessoas, ignorando semáforos vermelhos, escolhendo uma corcunda da calçada para executar um pequeno salto. Por vezes tenho onde ir, outras vezes avanço nas ruas da cidade, vou mais longe, perco-me na Lagoa, vejo clubes de remo e os prédios da fartura carioca, festas em coberturas e crianças com babás trajadas de branco; atravesso a nuvem de maconha criada pelos fumetas precoces do Posto 9, vou por aí até que seja hora de incendiar a tocha da paz na pedra do Arpoador enquanto o sol desce atrás do morro.
Porque acabo de chegar, ainda não tenho as coisas pegadas a mim, parece que deslizo por tudo com olhos de investigador dos bichos humanos. Daí a sensação de videoclip, mesmo quando vejo pedintes sem pernas ou me contam que os mendigos são afastados da rua com choques eléctricos ou quando o porteiro insiste em abrir-me a porta da garagem, se saio de bicicleta, ainda que lhe tenha dito que não era preciso abandonar a sua secretária, que posso muito bem fazer aquilo sozinho – há aqui um servilismo constante, a clara divisão das classes, a herança da corte portuguesa e da escravatura. Uns servem, outros são servidos. (Muitas vezes chamam-me doutor. Prefiro quando a garçonete da cafetaria Rio-Lisboa diz: “Bom dia, meu anjo? Que vai ser, meu amor?”)
Porque ando de bicicleta todos os dias, porque é o meu principal meio de transporte no Rio, passo por tudo com olhos curiosos, confiando que a velocidade a que viajo me permite ir conhecendo esta cidade. Tudo é ainda cartão postal e alegria de estreante e imagens melhoradas pelo Photoshop das noites de cachaça e chopp. Chegará o dia em que, espero, escreverei sobre o Rio de Janeiro com a mesma segurança e empenho com que escrevi sobre Lisboa. Que falarei da Praça Tiradentes com tanto conhecimento de causa como quando falo do Rossio. Por enquanto, limito-te a viver e a escrever como se montado numa bicicleta, protagonista de um videoclip. Sei que o céu aqui é diferente, que passarei a usar a palavra “malemolência”, que a cerveja está sempre gelada, que há muitos portugueses no Rio, que uso mais o gerúndio, que há muitas mulheres com capacidade para alterar a temperatura de uma sala de espera, que fui recebido com atenção, ternura e uma bicicleta emprestada. Tudo isto é um videoclip com final feliz porque sofro de jet lag existencial e porque, de facto, estou feliz. Haverá dias em que me zangue com o Rio, haverá dias em que voltarei a escrever com fúria ou saudades sobre Portugal. Haverá dias em que ouvirei discos de Amália e em que não me apeteça pegar na bicicleta. Mas isso, pelo menos por agora, não me interessa nada – tal como não me interessa o Alberto João Jardim ou o reality show da TVI. Porque a maior evidência, desde que aqui cheguei, apareceu-me (como é óbvio) através da música e enquanto pedalava: “É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe.”
Hugo Gonçalves
(publicado por NMG)
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