Já me irritaram muito as pessoas apaixonadas por sítios tão estapafúrdios como S. Martinho do Porto ou Moledo. Lembro-me de ter escrito uma croniqueta a gozar violentamente com os fanáticos frequentadores desses lugares. Ir para um sitio onde está sempre frio, fazer praia num local onde tomar banho de mar é arriscar não poder voltar a procriar, não se enquadrava propriamente no meu conceito de férias de Verão. Depois, aquela história de “a minha família vai para lá há gerações” eriçava o novo-remediado suburbano que há em mim. Apetecia-me sempre dizer: “ora porra, a tua família ia para lá porque a malta ia para a praia de fato e gravata e aquilo era o que se assemelhava mais a uma estância balnear a menos de cinco horas de caminho. Tivessem carrinhos e auto-estradas, e andassem de calções e camisetas e sempre queria ver se não iam para um sítio quentinho? “
Agora já não me enervam tanto Moledos e quejandos. Até lhes acho piada: a sensação de se estar num local perdido no passado, o estar num sítio frio quando a turba se está a torriscar em Vilamoura, o ficar no café à conversa com um tipo que só vemos naqueles dias. As partidas de lerpa à noite em frente a um aquecedor.
Li, já não sei onde, que o cronista relata uma realidade quotidiana, um sentimento, uma sensação através dos seus óculos. Mais embaciados hoje, com lentes escuras amanhã, com uns riscos depois de amanhã. A mesma realidade, o mesmo tema, muda quando nós mudamos. E nós mudamos, oh se mudamos, só que as nossas mudanças vêm para frente e para trás. Hoje execramos Moledo, amanhã até achamos o local interessante. Umas vezes reconhecemos isso, outras vezes não. Só que quando escrevemos as nossas contradições ficam ali sem que as possamos negar. E é por isso que o cronista é um tipo essencialmente honesto. De tanto olhar para as mesmas coisas – e, no fundo, escrevemos sempre sobre meia dúzia de assuntos –, de tanto se contradizer, percebe que as suas convicções são frágeis, que tanto pode ver graciosidade numa aranha, como achar o bicho nojento. Não existem crónicas verdadeiras ou análises à prova de bala. São como nós: imperfeitas e inseguras.
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