Segunda-feira, 28 de Dezembro de 2020

Frangos & galetos

Ia cortar a guedelha mas cheirou-me a frango assado e substitui a angústia de me sentar, uma vez mais, na cadeira de um barbeiro que não é meu patrício, pelo consolo da pelezinha tostada, as batatatas salteadas e o pão cortado em fatias que uso para limpar a molhanga do prato. Traumatizado por experiências capilares menos felizes nas mãos de russos, venezuelanas e italo-americanos, custa-me entrar num barbeiro e ter de começar tudo de novo. Devia haver uma ficha entre barbeiros, como há entre médicos, que explicasse a história do cliente: remoinho indomável na franja, entradas valentes, benfiquista que não se importa de falar de bola enquanto a tesoura faz o seu trabalho.

 

Há sempre uma desculpa para evitar cortar o cabelo – um frango assado na confeitaria Rio-Lisboa é mais que suficiente para interromper a minha busca e sentar-me na esplanada. Muitas vezes, quando saio de casa, não sei onde vou parar. Mas muitas vezes acabo na Rio-Lisboa, como a mesma gula com que uma criança obesa encara um Happy Meal. Frango assado, meia porção de batatas salteadas, pão, suco de melancia. O prazer prolonga-se por minutos tal como a combinação de sabores dentro da boca. Resta-me ficar, sem pensar em ler jornais, sem fazer o mapa de deveres, sem tirar apontamentos no bloquinho. Fico ali, como se numa cama de rede, observando e ouvindo. Não fazendo nada a não ser respirar.

 

É bom esvaziar a cuca dos apitinhos do telemóvel, jogar tempo fora, cagar no mundo da alta velocidade e perceber a importância das esplanadas nas esquinas das cidades. Saboreio o frango. Molho o pão, remato com um gole de suco de melancia. É como ver a canarinha de 82, tudo feito com suavidade e beleza, um gosto por gostar, diversão antes de eficácia.

 

Meia hora assim, somente respirando como o peito de Sócrates quando recebia a bola e levantava a cabeça para o império diante de si. Meia hora: este é o meu tempo para pensar nas coisas que não têm tempo para ser pensadas. Coisas como: isto não é um frango, isto é um galeto – assim chama esta galera aos frangos assados. Mas frango assado é outra coisa, é esperar no automóvel da família enquanto o meu pai ia buscar o jantar ao Galego ou ao Jardim dos Frangos ou ao Manolo. Frango assado é os jantares de adolescentes que preferiam gastar a massa em vodka, dividindo as aves e empanturrando-se em batatas fritas e pão saloio. Frago assado é a rua das Portas de Santo Antão, em semana de santos, com turistas lambendo os dedos e indianos vendendo cães de peluche a pilhas.

 

Galeto é outra coisa. Galeto é este ritualzinho que começo a praticar todas as semanas. Sair de casa, dar um passeio, querer jogar minutos fora e seguir o cheiro da gordura queimada. Galeto será agora esta memória de sabores na boca e bulício de esquina carioca.

 

Quando se joga tempo fora comendo galeto é isto que nos vem à memória: uma alemã disse-me, em Nova Iorque, que dizer “orange” nunca seria o mesmo que dizer “laranja”. Perguntou: “Em que pensas se dizes laranja?” E eu pensei no Algarve, na casa dos meus avós, qualquer coisa com muito verão. Podia ter feito um anúncio para tv com tanta imagem solarenga.

 

Coisas que se descobrem quando há tempo para jogar fora: frango assado é uma coisa, galeto será outra coisa. Tudo isto usando a mesmo língua. Hoje, mordendo uma coxinha suculenta e vendo o tráfico de pessoas na calçada, percebi o privilégio de poder usar duas versões do mesmo idioma e o impacto que isso terá em todos os portugueses que vivem aqui e aí. Assustem-se os puristas, mas se há tantos milhares de jovens tugas no Brasil como se supõe, com o passar dos anos, com as viagens de vai-e-vem, com os filhos dessa gente crescendo aqui, a língua começará a ser outra coisa. Isso, confesso, não me assusta. E se por ventura esta miscigenação linguística acontecer, enquanto indivíduo que se diverte com este ofício, vejo o futuro como algo entusiasmante.  

 

Ou talvez tudo isto seja apenas o delírio de quem tem tempo para jogar fora e procura epifanias no estado de transe provocado pelo galeto da Rio-Lisboa. Há quem reze, faça meditação, jogue búzios. Eu vou comer galetos para encontrar paz e clarividência e perspectiva.  God bless the chicken. Ou como dizia o outro: “It beats working.”

publicado por Hugo Gonçalves às 16:05
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Ia cortar a guedelha mas cheirou-me a frango assado e substitui a angústia de me sentar, uma vez mais, na cadeira de um barbeiro que não é meu patrício, pelo consolo da pelezinha tostada, as batatatas salteadas e o pão cortado em fatias que uso para limpar a molhanga do prato. Traumatizado por experiências capilares menos felizes nas mãos de russos, venezuelanas e italo-americanos, custa-me entrar num barbeiro e ter de começar tudo de novo. Devia haver uma ficha entre barbeiros, como há entre médicos, que explicasse a história do cliente: remoinho indomável na franja, entradas valentes, benfiquista que não se importa de falar de bola enquanto a tesoura faz o seu trabalho.

 

Há sempre uma desculpa para evitar cortar o cabelo – um frango assado na confeitaria Rio-Lisboa é mais que suficiente para interromper a minha busca e sentar-me na esplanada. Muitas vezes, quando saio de casa, não sei onde vou parar. Mas muitas vezes acabo na Rio-Lisboa, como a mesma gula com que uma criança obesa encara um Happy Meal. Frango assado, meia porção de batatas salteadas, pão, suco de melancia. O prazer prolonga-se por minutos tal como a combinação de sabores dentro da boca. Resta-me ficar, sem pensar em ler jornais, sem fazer o mapa de deveres, sem tirar apontamentos no bloquinho. Fico ali, como se numa cama de rede, observando e ouvindo. Não fazendo nada a não ser respirar.

 

É bom esvaziar a cuca dos apitinhos do telemóvel, jogar tempo fora, cagar no mundo da alta velocidade e perceber a importância das esplanadas nas esquinas das cidades. Saboreio o frango. Molho o pão, remato com um gole de suco de melancia. É como ver a canarinha de 82, tudo feito com suavidade e beleza, um gosto por gostar, diversão antes de eficácia.

 

Meia hora assim, somente respirando como o peito de Sócrates quando recebia a bola e levantava a cabeça para o império diante de si. Meia hora: este é o meu tempo para pensar nas coisas que não têm tempo para ser pensadas. Coisas como: isto não é um frango, isto é um galeto – assim chama esta galera aos frangos assados. Mas frango assado é outra coisa, é esperar no automóvel da família enquanto o meu pai ia buscar o jantar ao Galego ou ao Jardim dos Frangos ou ao Manolo. Frango assado é os jantares de adolescentes que preferiam gastar a massa em vodka, dividindo as aves e empanturrando-se em batatas fritas e pão saloio. Frago assado é a rua das Portas de Santo Antão, em semana de santos, com turistas lambendo os dedos e indianos vendendo cães de peluche a pilhas.

 

Galeto é outra coisa. Galeto é este ritualzinho que começo a praticar todas as semanas. Sair de casa, dar um passeio, querer jogar minutos fora e seguir o cheiro da gordura queimada. Galeto será agora esta memória de sabores na boca e bulício de esquina carioca.

 

Quando se joga tempo fora comendo galeto é isto que nos vem à memória: uma alemã disse-me, em Nova Iorque, que dizer “orange” nunca seria o mesmo que dizer “laranja”. Perguntou: “Em que pensas se dizes laranja?” E eu pensei no Algarve, na casa dos meus avós, qualquer coisa com muito verão. Podia ter feito um anúncio para tv com tanta imagem solarenga.

 

Coisas que se descobrem quando há tempo para jogar fora: frango assado é uma coisa, galeto será outra coisa. Tudo isto usando a mesmo língua. Hoje, mordendo uma coxinha suculenta e vendo o tráfico de pessoas na calçada, percebi o privilégio de poder usar duas versões do mesmo idioma e o impacto que isso terá em todos os portugueses que vivem aqui e aí. Assustem-se os puristas, mas se há tantos milhares de jovens tugas no Brasil como se supõe, com o passar dos anos, com as viagens de vai-e-vem, com os filhos dessa gente crescendo aqui, a língua começará a ser outra coisa. Isso, confesso, não me assusta. E se por ventura esta miscigenação linguística acontecer, enquanto indivíduo que se diverte com este ofício, vejo o futuro como algo entusiasmante.  

 

Ou talvez tudo isto seja apenas o delírio de quem tem tempo para jogar fora e procura epifanias no estado de transe provocado pelo galeto da Rio-Lisboa. Há quem reze, faça meditação, jogue búzios. Eu vou comer galetos para encontrar paz e clarividência e perspectiva.  God bless the chicken. Ou como dizia o outro: “It beats working.”

publicado por Hugo Gonçalves às 16:05
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Sexta-feira, 3 de Agosto de 2012

Um bom dia para uma casamento


A viagem

Eram pequenas coisas que se tornavam enormes: ele a conduzir e o pai ao lado, ele a ajudar o pai a entrar no carro por causa de uma dor nas costas, ele com o total controlo da rota, o silêncio entre os dois, não uma ausência de palavras, o silêncio. Pela primeira vez o silêncio. Crescer era isso – não apenas pagar contas, ser apanhado a conduzir com os reflexos inundados em gin ou nadar para fora de pé sem braçadeiras. Crescer, ser adulto, era aquilo: ir ao funeral da mãe do seu pai, a sua avó, tratar da papelada, ser mais pragmático diante do corpo que um médico em cenário de guerra. Havia muita coisa para fazer. Ser adulto era falar com o agente funerário e com a senhora das flores. Ser adulto era ouvir, na voz do pai, a sua voz de menino, frases rotas pelos soluços, as lágrimas escorrendo na garganta. Ele era adulto, o pai era velho. Ele já não era o menino do seu pai. 
O pai tinha-lhe dito, ao telefone, “A minha mãe morreu, a avó morreu”, e naquelas palavras revisitou o seu próprio choro quando entregava um teste com negativa ou se tinha perdido numa praça de Badajoz ou quando o irmão lhe batia – ou quando o irmão não lhe batia e ele fingia-se saco da pancada, íman das atenções da casa, o filho mais novo.
Pararam várias vezes no caminho. O pai tinha a próstata danificada, demorava-se em frente aos urinóis das estações de serviço enquanto ele lia os jornais, as revistas, as legendas das páginas duplas com mulheres lambidas pelo Photoshop. Comprava chocolates mas ambicionava cigarros. Não fumava diante do pai. Nunca fumaria diante do pai depois de ter sido apanhado, no sétimo ano, com um maço escondido na gaveta das meias, denunciado pela empregada que também lhe apanhara material pornográfico. Os cigarros eram pior. Nunca se falaria de masturbação naquela casa, mas o tabaco era meio caminho andado para as ganzas, a heroína, a desgraça de uma família com as pratas roubadas. Não fumava diante do pai, não falavam de política, não trocavam ideias sobre temas que acabassem em semanas sem um telefonema. 
Encostado ao carro, viu o pai, que saía da casa de banho, a braguilha aberta, os olhos procurando um lugar seguro, tal e qual a criança perdida em Badajoz. O pai, naquela estação de serviço, avançando medrosamente para um funeral, era o mesmo homem que, depois de confiscado o tabaco, lhe tinha atirado o maço à cabeça. O pai era forte e ambicioso e arrependia-se sempre que largava um estalo. O pai precisava agora de comprimidos para dormir e tinha os olhos tão vermelhos como uma tarde subaquática na piscina. 
Entraram no carro, ele não acendeu a rádio. Não era estranho o silêncio.

Serás terra

Era um dia lindo para um casamento. O céu não tinha um farrapo de nuvens e havia pássaros. Iam a pé até ao cemitério, o pai sem dizer nada, caminhando atrás da carrinha funerária, atrás da sua mãe, encolhida por tantos anos de vida, dentro de um caixão. No final, quando a demência tudo confundia na linha cronológica das sinapses da avó, ela só reconhecia o seu filho. Não o filho com filhos, dores na próstata e três casamentos. O filho dela, pequeno, o filho carente de coisas doces, o miúdo incapaz de perceber que a mãe seria enterrada num dia lindo para se fazer um casamento. 
O pai não falou no caminho para o cemitério, mas ele ouvia a sua voz como se equipado com auscultadores de museu. Na visita guiada, o pai repetia o que lhe contara há muitos anos, quando por ali passaram num verão: 
“Esta foi a casa onde nasci.” 
“O teu avô pôs um baloiço naquele sobreiro.”
Ele analisou as mulheres no cortejo. Só uma prima em segundo grau o cativou. Depois olhou para os pés dela e ficou manso. Sentiu-se aliviado. Não queria filmes nem filhos vítimas da consanguinidade. Olhou outra vez para os pés dela. Queria ter a certeza que não era aquilo que precisava. Ouviu a voz do pai nos auscultadores da infância:
“Devia vir cá mais vezes.”
“Tens a genica do teu avô.” 
Cruzaram os corredores de sepulturas. Como fazia sempre que estava num cemitério, pôs-se a contabilizar a longevidade das vidas dos mortos: Justino Gomes (1956-98), Bernardina Ramalho (1910-78), Domingos Lourenço (1976-77). Ele sabia que todos os humanos faziam esse jogo nos cemitérios, esse exercício de perspectiva, como quando estamos debaixo de um céu estrelado ou nas ruínas de uma civilização muito antiga. 
Há anos que o pai comprara, naquele cemitério, um pedaço de descanso eterno com jardim privado e cheiro a ciprestes. Estava lá o avô, estava lá o buraco que seria a campa de mármore da avó. Fez contas de cabeça para saber a idade do avô. Nos auscultadores ouviu:
“O teu avô fumava e bebia muito.”
“Eu nunca quis fazer mal a ninguém.”
“A minha mãe morreu.”
Porque tinha estado em vários funerais, ele sabia do apogeu dramático do caixão a descer ao fundo da cova. Segurou o pai pelos ombros, beijou-lhe a cara, não disse nada. Não fosse o choro do pai, que era também o seu choro de menino, tudo seria outra vez silêncio. Ele não chorou. Ele era o pai e o pai era o filho. 

Regresso
Nessa noite dormiram num hotel na cidade mais próxima. A prima em segundo grau também. No bar, porque sabia dos poderes libertadores das bebidas espirituosas, ele pediu apenas um copo de vinho, enquanto ela sorvia Baileys com gelo em cálice largo e falava de uma série de televisão com médicos e do preço do aparelho para os dentes da filha. Ser adulto era ver ficção americana no pequeno ecrã e endireitar aquilo que nasceu torto por causa dos nossos genes. Ser adulto era ir para o quarto sozinho. 
Ela disse: “Devíamos ver-nos mais vezes, nem sequer tenho o teu número.” Por via das dúvidas, ele olhou para os pés dela. Disse: “Vou dormir, o meu pai não anda bem.”
Escovou os dentes, apagou a luz e atreveu-se na escuridão, as pupilas aumentando, procurando os objectos, o seu pai deitado numa das camas. Dobrou-se sobre aquele corpo. Tentou ouvir a respiração. Não lhe tocou. Lembrou-se como, juntamente com o irmão mais velho, fingia que a cama era uma nave espacial. Entre os lençóis, disse baixinho: “Vamos levantar voo.” Não demorou muito a adormecer.
Na manhã seguinte, dentro do carro, outra vez o silêncio. Entregou o pai na casa onde crescera. Ali seria sempre mais filho do que pai, mesmo quando tivesse crianças e elas saltassem para a piscina e houvesse festas de aniversário e Natais que seriam outros Natais. 
O pai disse: “Não queres entrar?”
E ele voltou a ser o filho.

publicado por Hugo Gonçalves às 14:39
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Quinta-feira, 19 de Julho de 2012

E se a morte te esquecesse

A van dispara pela Avenida Atlântica como se eu ainda estivesse numa dessas noites adolescentes em que um dos meus amigos, bêbedo e viril, puxava o travão de mão numa curva de terra. Tantos anos depois, pensei que já me tivesse escapado das corridas, da testosterona dos machos jovens ao volante e da euforia de pau feito quando se ultrapassa outro carro.

 

Dou-me conta que é a primeira vez que sou o único passageiro de uma van. Não há mais passageiros. O cobrador sacaneia e provoca o cobrador de outra van quando paramos num semáforo. Trocam insultos, mas é tudo sangue bom, uma forma de comunicar, tal e qual eu e os meus irmãos que temos de pregar um calduço depois de um beijo ou, pelo menos, destacar algum defeito físico - "Então cabeçudo",Tudo bem pencas" - antes de um abraço.

 

As duas vans arrancam lado a lado como se numa prova oficial, com direito a semáforo verde e mais de cinco quilómetros de avenida pela frente. Os cobradores portam-se como de costume: metade do corpo fora da janela, a cabeça perscutando clientes na calçada, cães de caça com pregões batidos: "Copacabana, Leme, Rio do Sul, tem vaga sentado."

 

Penso no que será a vida daquele miúdo que me cobrou a passagem e agora tem o tronco do lado de fora, avançando a grande velocidade. Penso quantas horas trabalhará por dia, quantos cobradores desatentos não retiraram a cabeça a tempo e foram decapitados por uma placa de trânsito ou esmagados contra um ônibus. Penso como será suportar todos os dias as horas de ponta quando as vans sobrelotadas agonizam nas filas de trânsito, com gente em pé, dobrada como corcundas, encontrando algum consolo nos celulares. 

 

O motorista grita, o cobrador grita, são garotos em modo diversão, parece que estamos a cavalo e vamos matar cowboys, a velocidade aumenta e dou-me conta da minha obsessão com o perigo do trânsito no Rio de Janeiro. No livro que acabei de escrever há vários acidentes de carro. Também há o medo constante dos atropelamentos, que são aliás a principal causa de morte no trânsito no estado do Rio.

 

Falo muito disso, indigno-me com os alarves que estacionam os seus jipes na ciclovia (quem precisa de um veículo todo o terreno na cidade?). Discuto com os condutores que não páram para os peões (aqui pedestres) atravessarem a rua, passo-me da ginja quando um táxista tenta mandar uma bicicleta para a valeta, alerto para a boçalidade dos motoristas de ônibus que permanentemente andam em excesso de velocidade e que não fazem caso dos vermelhos - há uns meses vi uma família inteira, que se prestava a atravessar a rua, ficar a meio segundo da extinção coletiva por linchamento de ônibus.

 

Por outro lado, há algo infantil ou de bicho primário que por vezes assoma no meu peito quando subo o Vidigal no dorso de um mototáxi ou avanço numa van numa estrada com poucos carros, como a Avenida Atlântica a meio da manhã, algo que recupera a emoção da velocidade sem o medo ou o tino aconselháveis, apenas despreendimento e vamos adiante.  

 

 

Penso em tudo isto enquanto a praia de Copa e o Pão de Açúcar se movimentam na janela a alta velocidade. Fixo-me nesta obsessão e na contradição que me provoca, penso por que motivo aparece e reaparece naquilo que escrevo. Talvez tenha sido o acidente de um amigo (que ainda está numa cama) durante a adolescência, ou o atropelamento (o meu primeiro funeral)  de uma colega quando estavamos na faculdade. Talvez tenham sido aqueles contos do Rubem Fonseca - Passeio Noturno -, em que a mesma personagem sai para atropelar amantes e desconhecidos na noite carioca. Talvez seja o contacto diário com a selvajaria que é o trânsito nesta cidade. Mas no meio de todas estas reflexões faltou-me a decisão para agir. Dizer tão somente: "Pode ir mais devagar" ou "Eu saio aqui." Não o fiz, e ainda me pus a recordar a cena da adaptação de David Fincher do romance de Stiege Larson, The girlwith the dragon tattoo, uma cena que não consta do livro e na qual o vilão ainda por revelar convida o herói para tomar um copo em sua casa . O herói suspeita que aquele homem que o convida é o mau da fita e, no entanto, em vez de ir embora, aceita o tal whisky. Mais tarde, já nas mãos no captor, o herói ainda tem de ouvir um sermão sobre a estupidez humana, qualque coisa como: A vergonha ou o desconforto de dizer "não" resultam em coisas tão ruins e desagradáveis como a morte por homicídio.

 

Mesmo recordando a lição do filme não fui capaz de pedir ao motorista que reduzisse a velocidade.

 

Deixei-me ir conhecendo todos os riscos.

 

Como são estranhos os seres humanas e as suas regras de convivência.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 13:28
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Quarta-feira, 11 de Julho de 2012

Diário da Flip: a poesia está na rua (em Paraty)

“As notícias da minha morte foram exageradas.”  Mark Twain

 

É um lugar-comum muitas vezes repetido, mas é também uma evidência imediata para quem chega: Paraty é especial. Seja a brancura das fachadas imaculadas, seja a memória do tráfico negreiro, seja o esplendor azul do mar e verde do mato, sejam as ruas com pedras pé-de-moleque por onde circulam carroças com um vagar de antigamente – uma tranquilidade que desacelera o mundo e quem aqui chega. Paraty é um lugar ideal para se ler um livro. E para se escrever um livro.

 

É nisso que penso ao entrar no centro histórico da cidade, imaginando que, entre todas as pessoas que caminham pelas ruas ao entardecer, haverá já dezenas de escritores, enquanto outros estarão nos seus quartos de pousada, talvez escrevendo a página de um romance, talvez suspendendo a lâmina durante o barbear porque um poema assomou de repente no coração e partiu para o cérebro como uma bala perdida, talvez admirando os beija-flores que vão beber água aos jardins das pensões coloniais.

 

É uma visão romântica, esta de imaginar dezenas, se não centenas, de escritores numa cidade antiga e encostada no mar, todos eles inspirados e laboriosamente criando mais histórias, mais personagens, mais livros. Mas o que seria da literatura (e dos escritores) sem o romantismo?

Sem receio de parecer demasiado lírico, entrei na cidade onde até os cardápios dos restaurantes adaptaram a poesia de Carlos Drummond de Andrade, este ano homenageado na FLIP. As palavras do poeta, que faria 110 anos, andavam por toda a cidade, surgiam até projetadas na parede da igreja, na Praça da Matriz, fazendo-me lembrar dos tempos de inusitado otimismo lusitano, pós-revolução dos cravos, quando em Portugal se dizia e escrevia nas paredes: “a poesia está na rua”.

 

Sou suspeito: o meu ofício de escritor e editor providencia diariamente lenha para o lume do romantismo literário, fazendo-me acreditar que, tal como as notícias sobre a morte de Mark Twain, também as sentenças sobre a morte do livro são exageradas. E não falo apenas das tais dezenas de escritores recarregando a imaginação, nestes dias em Paraty, para depois irem rapidamente fechar-se no casulo de criação em Barcelona, no Rio de Janeiro ou em Manhattan. Não falo dos editores, agentes, livreiros, organizadores, moderadores e todos aqueles que, de uma forma bem pragmática (mas também romântica, espero), acreditam na sobrevivência do livro e continuam a produzi-lo, a divulgá-lo e a amá-lo.

 

É forte, a palavra amor. Mas sem contundência não há romantismo literário. E sem amor resta-nos apenas a burocracia. Não estou sozinho e muitos outros padecem do mesmo: não só os milhares que ouviram e aplaudiram e se riram com as palavras de Luis Fernando Veríssimo, na sessão inaugural da FLIP, como o próprio escritor, que declarou: “Aqui se celebra a permanência do livro.” E com a certeza das palavras de Veríssimo senti-me ainda mais entusiasta, lembrando-me de Javier Cercas, autor espanhol também presente na FLIP e que, num entrevista recente, quando questionado sobre o que pensava sobre o futuro do livro, respondeu: “Penso que é enorme.”

 

Depois da sessão de abertura, fortalecido pelas palavras de Veríssimo e de Cercas, voltei a passear pela ruas e a imaginar escritores e mais escritores trocando ideias para contos enquanto bebericavam cachaça de Paraty; ou autores imaginando trilogias fantásticas enquanto ouviam Caetano tocado por uma banda de rua; ou poetas ainda por revelar escrevendo em caderninhos o primeiro verso de um poema inventado à passagem de uma índia junto ao cais.

 

Por estes dias, milhares de leitores cruzam as ruas de Paraty, esgotam os ingressos da FLIP, escutam autores, leem seus livros, reduzem a velocidade, saciam o amor pela literatura sem pudor ou parcimónia.

 

Drummond escreveu: “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos.”

 

Tenho a certeza que o poeta, além das pessoas, também se referia aos livros.

publicado por Hugo Gonçalves às 18:23
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Quinta-feira, 21 de Junho de 2012

O momento antes do grito

O rádio a pilhas transmite novidades em direto da Grã Bretanha, o locutor fala do esplendor de Portugal na relva do estádio, a bola de couro retesando-se assim que embate no peito de Mário Coluna, relaxando em seguida, docemente, por sentir-se perto do coração tão negro, obedecendo a tudo o que o mestre lhe faz. Na rádio o homem narra como Coluna abre o peito e levanta a cabeça. Os ouvintes, num café da Rua do Viveiro, no Estoril, rodam os dedos na borda do copo de cerveja, esquecem a guerra em África, imaginam Eusébio desmarcando-se com a velocidade da pantera. Entre os ouvintes está o teu pai, cabelo com popa de James Dean, nenhuma tatuagem apesar dos três anos a servir a Nação, dois deles em Angola, onde a fruta era gigante, os amigos da Companhia tinham nomes como Maluco e Meio e onde certa tarde ele salvou um miúdo negro de se afogar.

 

Basta abrir e fechar os olhos, já não é o teu pai de 1966 que está de orelha atenta ao rádio. Em vez da popa de galã de filme americano e da lábia que laçava meninas, tem agora bigode de chefe de família e, não te lembras muito bem porquê, estão numa loja de eletrodomésticos e móveis, acompanhando numa televisão a cores o seguimento da jogada que começou no lado esquerdo do peito de Mário Coluna. Vês como a bola chega ao pé insano de Fernando Chalana, como ele arranca os rins do primeiro médio que entra à queima, deixando-o sentado como um bebé no penico, marchando depois em cima da linha de cal na direção da baliza, escondendo o sorriso maroto com o bigode que se parecia com o bigode do teu pai de 1984.

 

Passa tudo tão rápido que, quando Chalana confunde as ancas de outro adversário, já estás na faculdade e tens sal do Guincho tatuado na pele, talvez tenhas deixado duas cadeiras do aborrecido curso de jornalismo para fazer em Setembro e já bebes cerveja durante a tarde. Estás de férias, queres namoradas de verão, vês na TV da casa de um amigo como Rui Costa recebe o passe de Chalana e rasga a defesa, apanhando Figo no costado direito do terreno, fazendo-te saltar anos na cronologia futebolística da tua vida, um Euro em Inglaterra, outro na Holanda, João Vieira Pinto aparecendo na área enquanto Figo ameaça para um lado, mas sai a correr por outro, no Estádio da Luz em 2004, e é então que Eusébio, Jordão, Nené, Paulo Sousa, Cristiano Ronaldo, todos sobem no campo, todos se preparam para saltar, rematar, para coser uma data na linha da memória: com quem estavas, quem te abraçou, quem foi  beber vinho tinto e ouvir fados se por acaso a derrota.

 

Vês como a bola foi cruzada para o centro da área, mesmo que agora não haja relatos na rádio ou sequer tenhas televisão em casa. Vês como tudo está ligado, desde o teu pai na Rua do Viveiro até ao teu corpo sozinho diante de um computador, num apartamento no Rio de Janeiro, esperando que Nani volte a acolher um cruzamento largo como quem pega uma namorada ao colo, e que depois avance para cima do defesa. É o regresso sazonal ao futebol, a revisitação da memória, o filho pródigo voltando temporariamente a casa. Ou talvez seja apenas uma desculpa para te lembrares desse começo de verão em Portugal, quando as noites têm preguiça de chegar e tudo é ainda possível.

 

Hoje, se gritares golo, não estarás sozinho.

publicado por Hugo Gonçalves às 14:20
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Quarta-feira, 13 de Junho de 2012

O dia em que voltei a sonhar com futebol

para o meu irmão caçula

 

 

 

Não estavas lá e, no entanto, falas desse golo como se houvesses esperado nas filas sobre-lotadas do antigo Estádio da Luz, debaixo de chuva, para ver a elegância de Rui Costa planando sobre o relvado, a forma como a bola avançava graciosamente se lhe tocava, o seu corpo de planador abrindo as asas, um jeito de correr que fazia o jogo mais bonito, e o chuto em que a força e a beleza, misturadas na quantidade exata, levaram a bola a passar por cima do guarda-redes, disparada de fora da área, para fazer rugir o estádio e estremecer o cimento armado da Catedral.  

 

Portugal ganhou esse jogo, com a Irlanda, por três zero (até Cadete marcou um golo) e conseguiu apurar-se para o Europeu de Inglaterra, em 1996.

 

Não estavas lá. Tinhas sete anos, tal como eu quando assisti à derrota de Portugal, com a França, em 84. Não estavas lá, mas falas desse jogo como se tivesses estado. Talvez porque te falei dele várias vezes, talvez porque também muitas vezes tentei imitar o Rui Costa quando chegavas da escola e jogávamos na entrada de casa, fazendo da garagem a baliza e escavacando as flores nos canteiros.

 

(Anos antes, quando eras ainda mais pequeno, jogávamos com uma bola de ténis na cozinha)

 

A primeira vez que te levei ao futebol foi para ver um Benfica - Sporting, e o Jardel deixou-nos o azedume de um empate nos últimos minutos. Mas é nesse jogo contra a Irlanda, é no esplendor desse golo de Rui Costa, que sinto que o futebol primeiro nos uniu.

 

E se andava desmotivado com o jogo, melhor, com a palhaçada que hoje rodeia o jogo, lembrei-me de como te contava coisas do tempo do Valdo, do Mozer, do Vitor Paneira, de uma meia final contra o Marselha, do pontapé canhão do Carlos Manuel, em Estugarda. Mas hoje és tu que me dizes qual é o onze inicial do Benfica ou quem será o jovem sensação deste Euro.

 

Sabes, zango-me amiúde com o futebol, mas regresso sempre. E se o futebol me ajuda a estar mais perto de ti, se de cada vez que houver um Euro ou um Mundial ou o Benfica ganhar o campeonato, eu puder sentir-me tão próximo como me sentia rematando contra a porta da garagem (e tu de luvas, equipado como um guarda-redes), como me sinto sempre que te conto o golo do Rui Costa nessa noite de aluvião e absoluta felicidade, então manterei para sempre um pouco de inocência futebolística, essa busca pela emoção e beleza pura do jogo, sem comentários, sem análises, sem repetição, só o golo de Rui Costa, as suas asas de garça abrindo e fechando para celebrar o golo, saltando para fora do campo, eu e tu nas bancadas, afogados de chuva e irmandade, eu e tu, mesmo que nunca lá tenhas estado, eu e tu e um golo celebrado em conjunto.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 14:27
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Quarta-feira, 6 de Junho de 2012

Sands Casino, Las Vegas, 1966

 


Joe Cortese detestava a cidade, dizia que areia do deserto se pegava nos dentes e que o fedor dos derrotados na roleta se entrelaçava no perfume das prostitutas da calçada. Além do bilhete que iria comprar, no mercado negro, no bar do hotel, Joe não conseguia encontrar nada que pudesse levá-lo a acreditar nas possibilidades daquela noite. Tinha, mais do que tudo, um trabalho para fazer.
 
No bar do hotel, Bobby Snout, amigo de um amigo, gordalhufo que cheirava a pizza com extra queijo, perguntou: “Tu também és paisano? De onde? Calábria?” Joe terminou o whisky, pegou no bilhete que acabara de comprar e disse, olhando a viscosidade de Bobby Snout de alto a baixo:

“Sou português, filho de beirões da raia.”

“O que é isso, México?”

“Vocês italianos só conhecem a ponta encardida da bota e a estação de comboios para Nova Jérsia.”

“Um pouco de respeito. Estás fora do teu território, ragazzo.”

Joe apertou o braço contra o coldre e sentiu o couro nas costelas, a coronha da sua pistola pressionando-se contra a carne. Não gostava de Las Vegas, precisava de outro whisky, não tinha mais cigarros e, apesar do bilhete no bolso, teria que perder parte do espetáculo para finalizar a missão que o levara de Sullivan Street, Manhattan, até aos corredores do Sands.

Joe esticou a mão e disse: “Estou na reinação.”

E Bobby Snout riu como um porco dos desenhos animados.

“Estivéssemos em Nova Iorque”, pensou Joe Cortese, “e fazia morcela de sangue contigo”.

Joe andava a tentar controlar a raiva desde que, certa noite, num bar de East Village, viu um jamaicano dar um par de estalos numa miúda mulata e resolveu interferir, arrastando o mán pelos rastas até à rua, onde repetidamente enfiou a cabeça do rapaz na caixa dos jornais enquanto dizia: “Consegues ler o teu obituário?”

Joe gostava de mulheres africanas, mas perdia as estribeiras quando confundiam os portugueses com sul-americanos ou porto-riquenhos.

Respirou fundo para não voltar atrás e apunhalar a mandíbula de Bobby Snout com a garrafa de Veve Clicquot que tinha visto dentro de um balde com gelo no balcão.

Dirigiu-se para a sala de espetáculos e perguntou onde eram as casas de banho. Não teria tempo sequer de sentar-se. Nas mesas, mulheres bonitas e bêbedas davam risadas e sentiam o fôlego de atores de cinema que lhes sopravam propostas de arrepiar a pele do pescoço.

Apagaram-se as luzes, ouviu-se o tilintar do gelo até que uma bateria encheu a sala e a voz anunciou:

“The Sands is pround to present a wonderful new show of a man and his music. The music of Count Basie and his great band. And the man… is Frank Sinatra.”

Ao ouvir os aplausos Joe sentiu-se como na peça do liceu em que fora protagonista. A raiva diluiu-se no sangue e no whisky.

Sinatra apareceu em palco: “How did all these people get into my room?”

Entre as canções “Come fly with me” e “I’ve got you under my skin”, Joe pensou na cabo-verdiana que conhecera num bar de Hoboken. Ela ia ensinar-lhe português, coisa que os pais nunca fizeram, e deixara que os dedos dele tocassem os seus mamilos por cima do tecido num parque de estacionamento.

Joe engoliu o whisky e foi para a casa de banho. Numa das cabinas encontrou uma mochila preta. Confirmou o conteúdo e dirigiu-se para o quarto. Aí mudou de roupa. Vestiu-se como um polícia, deixou a arma debaixo do colchão e pegou no revólver que vinha num saco de papel dentro da mochila.

Saiu do quarto e caminhou até ao fundo do corredor. Confirmou o número, os dedos bateram na madeira com força e disse: “Polícia, têm de sair, houve uma ameaça de bomba.” Ouviu vozes lá dentro e um homem dizendo: “Não abras.”

Tarde de mais. Assim que a mulher abriu a porta, Joe empurrou-a para o chão. O homem levantou-se e foi a correr para a casa de banho. Joe puxou a mulher pelos cabelos (um dos seus modus operandi preferidos) e foi dar com o homem tentando procurar algum tipo de arma.

“Vais matar-me com um mini sabonete?”, disse Joe. Em seguida virou-se para a mulher: “Tu, vai buscar um travesseiro.”

E só então percebeu que ela era negra como certos felinos escovados muitas vezes, uma negritude densa e cintilante. Viu como ela andava languidamente embora as mãos lhe tremessem. Viu como regressou, apenas de calcinhas e com os mamilos descobertos (os mesmos mamilos da cabo-verdiana de Hoboken). Viu como ela rogava pela vida mesmo sem dizer nada.

Joe trancou a porta da casa de banho com todos lá dentro. Olhou em seu redor como se verificasse que a família inteira estava presente para o jantar de Natal. Depois deu duas cronhadas poderosas na cabeça do homem, que estava de cuecas, sentado na borda do jacuzzi.

“Merda”, disse Joe para si mesmo enquanto o homem lhe fugia das mãos e submergia nas bolhas do jacuzzi. O sangue maculou a água como corantes de gelado na boca de uma criança. Joe puxou-o para fora com dificuldade, caindo, durante o processo, e ficando molhado até à cintura.

“Foda-se”, disse, perdendo a compostura. E olhou para a mulher: “Desculpa, não costumo ser tão mal educado. Se a minha mãe me ouvisse.”

Com o homem no chão da casa de banho, Joe passou a asfixiá-lo com o travesseiro. Começou a sentir uma fraqueza na cabeça, um ardor nos bíceps, talvez fosse dos whiskys que bebera sem jantar, talvez estivesse a ficar velho para usar as mãos naquele tipo de serviços. Pensou na cabo-verdiana, em Frank Sinatra, que já devia ter cantado “One more for the road”.

Gotas de suor frio rasgavam-lhe as costas. Um fio de cuspo escorreu pela boca. Uma veia inchou nas têmporas.

Joe Cortese puxou do revólver e disparou três tiros: um na cabeça, dois no peito.

Em seguida apontou a arma para a mulher.

“Como te chamas?”

“Maria Magdalena.”

“Não, a sério.”

“A sério, o meu avô era italiano.”

 “Gostas de Sinatra?”

“Muito.”

Ela obedeceu a todas as ordens e pegou rapidamente na roupa. Mudaram-se para o quarto de Joe. Vestiram-se. Ele enfiou o revólver do crime e o uniforme na mochila preta e desceram para a sala de espetáculos. No caminho passaram pelo bar, onde um empregado pegou na mochila e desapareceu com ela, fazendo um sinal com a sobrancelhas que substituiu as palavras: “Não te preocupes, ninguém vai encontrar isto.”

Entraram quando Sinatra terminava o monólogo cómico. Sentaram-se numa mesa, Joe pediu champanhe e ela perguntou:

“Porque estás a fazer isto?”

“Porque quero que leves alguma coisa boa desta vida.” Joe apontou para o palco e pediu silêncio. Sinatra dizia:

“I think I'd better sing before I turn 51.”

E cantou  “You make me feel so young”.

No final do concerto ele meteu-a num carro e dirigiu-se para o deserto.

Fazia frio e a areia rangia nos molares de Joe. Ela ficou diante dele. Frente a frente.

Joe julgou ouvir "Angel Eyes” tocando ao fundo. Lembrou-se de como, após Sinatra cantar o verso “Watch me as I disappear”, todas as luzes se apagaram, a escuridão total na sala, como a noite no deserto, como a pele e os olhos da mulher diante dele.

Joe apertou o gatilho. A noite fez-se dia.

 

publicado por Hugo Gonçalves às 15:50
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Quarta-feira, 30 de Maio de 2012

Manifesto pró-grama e anti-relvas

 

O relvas é bicho antigo, escorpião de Alcácer Quibir, e não há herbicida que nos valha.

 

O relvas é neto do dantas, carrega o gene falhado das gerações bandidas.

 

O relvas não marca passo, anda para trás.

 

Não se mate o relvas, não sujemos as mãos, que para meliantes já nos basta o séquito do relvas e ainda apanhamos uma doença ruim.

 

Mas dispare-se uma pistola de fulminantes, pólvora sem furo de bala, porque o relvas apodrecerá por dentro, sozinho, num lar de idosos de um banqueiro amigo do relvas.

 

Bang Bang, assuste-se o relvas.

 

Uma geração que grama com o relvas é uma geração ajaezada para o velório da decência, cavalgada pela mesquinhez, vergastada pela mediocridade.

 

O relvas é o Mister Burns depois da explosão da central nuclear de Springfield.

 

O relvas é a centopeia dentro das galochas da criança que vai para a escola.

 

O relvas é o carro alemão de grande cilindrada, as parcerias público/privadas e as derrapagens orçamentais.

 

Bang bang, pregue-se um cagaço ao relvas.

 

O relvas não tem obra feita e mesmo que tivesse não deixaria de ser um relvas.

 

Por onde o relvas passa, agonizam ervas daninhas e colapsam eucaliptos.

 

O relvas contradiz o aforismo que garante que o poder é afrodisíaco.

 

O relvas faz-nos emigrar, faz-nos desesperar, faz-nos desistir.

 

O relvas é mau para a tosse, dá mau nome à vizinhança, estraga qualquer festa.

 

Bang Bang, alguém grite, quando o relvas for almoçar ao Eleven.

 

O relvas deixa comichões no corpo.

 

O relvas distrai-nos do pôr-do-sol, dos filhos, dos amigos, é tóxico porque acumula nas raízes tudo o que está mal, é uma metáfora parola para décadas de descaso, manipulação e síndrome de porteiro de discoteca.

 

O relvas é igual a tantos outros relvas. Nem nisso é original.

 

O relvas dá mau nome à relva, estraga-nos as fantasias campestres como se fosse um empreendimento construído em zona protegida.

 

O relvas nem se pode fumar porque não dá onda, só dores de cabeça.

 

Se não joga golf, o relvas devia jogar, porque lhe assentará tão bem como uma condecoração daqui a dez anos, atribuída por um presidente amigo e compincha do partido do relvas.

 

O relvas é um Sócrates. Um José Sócrates.

 

O relvas é pernicioso porque nos obriga a escrever manifestos quando podíamos estar a pisar a grama.

 

O relvas faz-nos preferir a grama.

 

O relvas prefere a grana.

 

Portugal, que com todas estas urtigas conseguiu a classificação de país devedor com sintomas de depressão, mas sem guita para a terapia ou comprimidos; Portugal: país exportador de almas esgaçadas, com o rabo preso na europa e o nariz a farejar o atlântico. Portugal de relva seca, cimento armado, centros comerciais recordistas e vira o disco e toca ao mesmo, oh Portugal, ficas mais pequeno, visto de longe, com esse relvas a puxar-te as rédeas, cagando tudo no caminho. Mas um dia, um dia relvas, a grama será mais importante que a grana, e descerão a tua estátua lá na praça da aldeia onde nasceste, e Portugal voltará a ser qualquer coisa mais verde, qualquer coisa com mais esperança e gente limpa.

publicado por Hugo Gonçalves às 15:07
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Quarta-feira, 18 de Abril de 2012

Johnny be good

1
Johnny nunca vira um elefante na savana embora tivesse sido concebido em África, num território onde os paquidermes eram comuns.

Johnny olhou para o animal, que não tombou com o primeiro tiro. Johnny só começou a correr após o segundo disparado, como todos os jornais viriam a relatar mais tarde.


2
Há vinte e três anos, a mãe transportara Johnny, ainda alimentado pela placenta, entre o continente da fome negra e a promessa do continente branco, numa patera, com mar calmo e desembarque nas praias mediterrânicas durante a noite. Foi apanhada pela polícia, mas como estava grávida não podia ser deportada.

Johnny cresceu na Europa vigorosa da indústria automóvel, do advento das telecomunicações, das obras públicas que davam trabalho aos que chegavam de fora, como a mãe de Johnny, que viveu em três cidades europeias, até se casar com um primo, e montar um mercado com produtos do seu país.

Johny era bom aluno, cidadão com passaporte, um exemplo da integração e do modelo de desenvolvimento. Terminada a faculdade, foi escolhido no processo de seleção para ajudante pessoal do monarca do país. Já não vestia sua alteza da cabeça aos pés, como aconteceria séculos antes, e teve uma notoriedade incomum para o posto que ocupava. Os jornais fizeram perfis sobre o rapaz africano, que atravessara Gibraltar na barriga da mãe – uma família que cruzou a Europa até que, apoiada e motivada pelo sistema e pela bondade das gentes, conseguiu que o filho frequentasse os mesmos salões com chefes-de-estado, estrelas rock, celebridades cinematográficas, atletas de primeira linha.


3
O segundo tiro não acertou no animal. O elefante seguiu caminho, foi perdendo velocidade, cambaleava como os bêbedos, tombou junto de uma árvore que Johny não sabia o nome mas, estava seguro, vivia ali há mais tempo que toda a comitiva do safari em que participava o monarca.

Johny tinha uma namorada. Pensava casar e, mais tarde, depois do estágio com o rei, abrir um negócio, como fez sua mãe. Johny correu, por fim, mas não para o monarca, que jazia no pó, sangrando da cara porque a arma, com defeito, rebentara no momento do segundo disparo.

Johny correu para o elefante e, mais tarde, os jornais e as televisões repetiram o relato desse detalhe como a mesma insistência com que um adolescente relembra a sua primeira experiência sexual nos dias subsequentes ao extraordinário evento.

Contrataram-no para fazer anúncios de produtos orgânicos, de carros amigos do ambiente e de bancos e companhias de energia que se esforçam por dar miminhos aos clientes em função de um mundo melhor e sem poluição.


4
Johny ficou famoso.


O rei desfigurado.

E um cronista social, malvado e megalómano, tornou famoso o cognome do rei, aquele pelo qual ficará conhecido nos manuais de história: “Trombinhas”.


Houve manifestações nas redes sociais e em certas ruas por causa do incidente com o elefante. Escreveram-se crónicas a favor da caça e outras em desprimor da raça. Homem que é homem mata o que come, diziam uns. Vais pedir um double cheese de elefante?, diziam outros.

Johnny foi despedido, meses depois, quando ninguém já se lembrava dele ou do animal assassinado. O rei chamou-o e disse:

“O senhor preferiu ir em resgate do animal do que salvar o seu monarca.”

Trombinhas tinha saído, recentemente, de uma plástica de sucesso que, no entanto, não o impedia de parecer o Homem Elefante.

 

Johnny disse:


“O animal, como se percebe pela ação da justiça do Acaso na sua tromba, é vossa alteza. Diria mesmo uma real cavalgadura (sem insultar os equídeos) e uma majestosa bosta de vaca (igualmente sem desprimor para o trânsito intestinal dos bovinos)”.



5
Johnny abriu um mercado, teve um filho e jamais se mudou para África ou voltou a ver um elefante na savana. Quando o rei morreu, engasgado na azeitona de um dry Martini, a bordo de um iate onde pescava tubarões, Johnny fugiu do luto oficial e das cerimónias nas ruas. Levou o filho ao zoológico. Não era a savana nem havia árvores ancestrais, mas Johny habituara-se, há muito, que a procura da excelência pode ser frustrante. O zoo servia.

Desrespeitando os cartazes que pediam para não alimentar os animais, Johnny deu amendoins ao filho e disse que os atirasse na direção dos elefantes.

Johnny inquietou-se, pensando se, no futuro, o seu filho seria caçador, se abandonaria um cão, se compraria bilhetes para a tourada.

Depois, um pensamento deu-lhe algum descanso:

“Quanto à forma como o meu filho irá tratar os animais, está tudo em aberto. Mas ao menos sei que não tem a sina amaldiçoada de um dia ser rei.”


publicado por Hugo Gonçalves às 17:26
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