Terça-feira, 24 de Julho de 2012

à nossa maneira

História nº 1. Um grupo de amigos de Lisboa pára num restaurante de São Miguel. Um anuncia que vai querer “um bifinho”. O empregado afasta-se um passo, incrédulo, e repete: “Bife?! Bife?! Eh, piquene, tu vás comê é pêxe e vás gostá!”

 

História nº 2. De dia, era segurança; à noite, respeitável proprietário dum tasco de Lisboa. Certa vez, de férias nos Açores, é mordido numa perna por uma água-viva. Acto contínuo, um desconhecido abre a braguilha e desata a urinar-lhe para cima da perna. O nosso homem enche o peito e vai tirar satisfações, deparando-se com a perplexidade do estranho que explica que apenas lhe aplicava o melhor antídoto do mundo para queimaduras de alforreca. Nem deu para o obrigado. O benfeitor partiu de imediato, ofendido com a ingratidão.

 

História nº 3. Quando X visitava um casal de amigos açorianos, ouvia amiúde o homem gabar uma estrela do showbizz que via na TV. X nunca disse que a estrela em questão era sua mulher e guardou-se, anos a fio, para a surpresa. Um dia, voltou com ela de braço dado. A mulher abriu a porta e, com a voz a tremer, chamou o marido. Após alguns minutos, o homem aparece em roupa interior e pistola de chumbos, queixando-se duns “murganhos” que lhe andavam no sótão. Queixou-se, olhou para a mulher de X como que se perguntando “quem será esta?” e voltou para o extermínio. Horas depois, já documentado pela esposa quanto à identidade da desconhecida, liga para X. Não para pedir desculpa pela indelicadeza, mas para insultar o traidor que consentira que aparecesse naqueles preparos diante da musa.

 

Vivemos num mundo onde as habilidades dum gato no interior dum apartamento anónimo são vistas no dia seguinte por milhões de espectadores dos cinco continentes. Onde a fruta de época deu lugar a mangas e papaias trazidas diariamente por grandes cargueiros aos supermercados da velha Europa. Onde se pode almoçar peixe à segunda-feira porque os viveiros não folgam ao domingo. Onde podemos comer o mesmo hamburger e entrar na mesma loja e ver o mesmo anúncio em centenas de cidades absurdamente longínquas no mapa.

 

Este mundo, em parte pressentido, em parte surpreendente, ganhou o nome de “aldeia global”. E criou um paradoxo: ao diluir as diferenças, tornou mais importante do que nunca ser diferente.

 

Nessa contradição, os Açores continuam à procura dum lugar. Por vezes, armaram-se em moderninhos. Levantaram torres que fazem sombra a hectares de terreno deserto, filas de bares e discotecas que deram música às moscas, centros culturais que ignoraram que a cultura açoriana prefere arraiais de madeira a salões de veludo.

 

Hoje, nos dias do facebook e dos smartphones e das low-cost e dos franchise das superbrands, temos as mesmas dúvidas e medos de há trinta anos, quando a televisão a cores parecia o topo inultrapassável da evolução. Hesitamos entre o medo de perder a identidade e o pavor da irrelevância.

 

Nas três histórias acima, contadas por diferentes amigos em diferentes circunstâncias, está uma resposta possível. Aquela franqueza generosa é a nossa essência e a essência dum sítio o seu maior produto de exportação.

 

Que farão as lideranças políticas não se sabe, mas pusessem a mandar o empregado do restaurante do peixe, o homem do antídoto para as águas-vivas e o exterminador de murganhos e dir-vos-ia. Os Açores tornavam-se marca registada de reputação mundial. A terra dos afectos roucos, onde o tempo e a distância nos ensinaram que o amor é mais importante do que os salamaleques.

 

Publicado na Azorean Spirit.

publicado por Alexandre Borges às 01:53
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Segunda-feira, 11 de Junho de 2012

isto não é uma crítica literária

Os preconceitos têm um sentido de justiça que me agrada. É verdade que, quem é “preconcebido” pode perder alguma coisa, mas quem perde garantidamente e em força é aquele que “preconcebe”. Perde porque há-de morrer de tédio com as suas certezas, sem tesão com a falta de surpresa, aborrecidamente a dizer para ele próprio que sempre teve razão e ninguém para o ouvir.

 

Isto nota-se muito na “cultura”. Aquela pose que dá jeito em jantares onde se atiram máximas sobre autores e obras “incontornáveis” e intraduzíveis onomatopeias de desprezo a propósito de coisas que, em verdade, nunca se experimentou.

 

Os jornais são um bom exemplo (há milhares de outros). Os ditos de “referência” e os “outros”, como se a “referência”, neste caso, tivesse alguma coisa de absoluto e não oscilasse ao sabor de lideranças políticas e empresariais.

 

Aceitando que, neste jogo, como em muitos, não há inocentes, saúde-se o “Correio da Manhã”, que tem a nobreza de não tentar parecer “sério” e a franqueza de ter por “referência” mais evidente o país a que pertence, com tudo quanto esse país tem de bom e de mau.

 

O preconceito poderá não deixar ver, mas, para lá da longa secção de crimes passionais, machadadas e afins, há uma boa mão cheia de anos que o “Correio da Manhã” é, provavelmente, o jornal diário que mais notícias traz, que toca sem medo em assuntos onde outros preferem manter silêncios e distâncias cómodos e que, goste-se ou não, faz notícia com a primeira página a um ritmo e constância verdadeiramente admiráveis. Mesmo a secção dos golpes de machado e queimaduras com ácido entre vizinhos e familiares não deixa de falar dum país real que poderíamos pensar não existir, mesmo ao lado de nossa casa, se só lêssemos os senhores “derreferência”.

 

Dito isto, preconceituoso me confesso. Que há anos me encaminho para estas conclusões e continuo a preferir comprar coisa menos colorida no quiosque e a deixar o “Correio da Manhã” para uma leitura gratuita no café (num qualquer dos muitos cafés desse país a que o “Correio da Manhã” se refere e que o disponibilizam, qual serviço público, entre “A Bola” e o “Record”.

 

Como nem todos os dias se vai ao café ou, indo, nem sempre o “Correio da Manhã” não está a ser lido por outro camarada entre uma bifana e a meia de leite, não acompanhei, como merecia, a coluna que o Francisco José Viegas lá publicou entre (salvo erro) 2008 e 2011. Esses textos foram reunidos e publicados em livro, o Dicionário De Coisas Práticas, há coisa de ano (salvo outro erro), ali pelos dias em que foi conhecida a nomeação do Francisco para secretário de Estado da Cultura.

 

Como, uma vez entrando na categoria dos livros, os preconceitos se reduzem drasticamente (mesmo que estejamos a falar dum livro de anedotas da Popota), comprei e li o Dicionário, chegando em choque à conclusão com que abri esta crónica: quem realmente perde com o preconceito é quem “preconcebe”. Nestes três anos, houve alturas em que me lamuriei da falta de cronistas que apreciasse, de uma voz de direita esclarecida que desmascarasse o embuste político em que vivíamos e de um mestre da cultura que nos orientasse no supermercado de oferta artística em que – felizmente (bem pior seria o contrário) – vivemos. Tudo isso estava ali, no “blogue” do Francisco, entre machadadas em Vila Pouca e escândalos políticos em Lisboa.

 

Serve, pois, a presente de chicotada auto-infligida e recomendação franca. Não digo que se mudem todos para o “Correio da Manhã”, mas, pelo menos, que o catrapisquem no café para equilibrar as doses de “referência” e “realidade”. E, sobretudo, que adquiram e consultem o Dicionário De Coisas Práticas. Entradas concisas para um pensamento que não pactua com a cultura “moderninha”, de facilidades, “fedelhos”, pedagogos, big brothers e virgens puritanas.

 

P.S: Vale também isto para o Henrique Raposo, que só li como merecia nos textos reunidos em Portugal Do Avesso, ao invés de o ter feito pouco a pouco, semanalmente, no “Expresso” (que já há anos deixei de ler, não por preconceito, mas recomendação do meu médico dos ossos).

publicado por Alexandre Borges às 21:18
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Segunda-feira, 4 de Junho de 2012

onde a história cruza com a rua e

Não sou do tempo do vinil. Enfim, não no sentido último. Não faltavam singles e LPs na casa paterna, bem acomodados num velho móvel gira-discos que fora prenda de casamento e que ainda dura (o móvel, mas também o casamento). Só que, quando chegou o momento de ter o dinheiro e a paixão para comprar música própria, já estavámos no CD.

 

Com pena. Gostaria de desfraldar histórias de velhos 55 rotações e truques para contornar agulhas dadas a idiossincrasias, falar do murmúrio do papel da bolsa interior libertando o vinil, do pó, de grandes sessões de vira o disco e toca o mesmo.

 

Não foi assim. Paciência. Chegamos frequentemente no fim das festas onde sonhámos ter dançado.

 

Apesar de tudo, ainda fui do tempo dele. Do disco. E posso falar do primeiro que comprei – e não do primeiro download que fiz (aí, confesso, não sei onde se carimbará a nostalgia).

 

E, como se, nas matérias essenciais, o acesso fosse vedado ao acaso, entre tanto mau gosto da adolescência, decidi que o primeiro disco que compraria seria de Bruce Springsteen (os homens conhecem-no como aquele da guitarra; as mulheres como o do rabo). Valor seguro. Anjos-da-guarda falando por nós. Coisa que não passaria. Ordens superiores dos espíritos do futuro. Podia ter sido Onda Choc, mas eles não o permtiriam.

 

Isto para chegar aqui, à manhã de hoje, quando Lisboa parecia ressacar do espectáculo de ontem. O Chiado deserto, as passadeiras livres para atravessar no vermelho, vozes roucas, um silêncio de surdez pós descarga histórica de decibéis.

 

Bem sei que não será assim. A imprensa diz que estiveram lá 81 mil pessoas, um número gordo, mas que não dará para contaminar uma cidade por onde passam dois milhões e meio, todos os dias. Mas eu digo que é. Que o condutor do metro ainda vai a trautear o “Thunder Road”, que esta gente de phones está a descobrir “The River”, que nos escritórios se correm os estores e desligam as luzes para ouvir, só mais uma vez, “Dancing In The Dark”.

 

Pois. É só música. Música, letra, homens e mulheres all-american, ainda por cima. Coisa muito própria, sobre coisas que, dirão, não vivemos. Mas vivemos. Ainda esta noite, vivemos outra vez. Springsteen como “boss” eterno e indiscutível, pai, irmão mais velho de gente que lhe comprou o primeiro disco em três décadas diferentes. A gritar, a solar, a explicar por que não veio a mulher, a discursar, a pregar, em português, em inglês, em soul, a pegar num miúdo ao colo, a abraçar as garotas, a aceitar pedidos, a correr, a guitarrar caído no chão, a dar o coração inteiro como quem acaba de chegar a casa. A E Street Band como filarmónica de super-heróis. As canções de operários, vagabundos, jovens casais desencantados, famílias que se têm de proteger, fantasmas e outras coisas misteriosas, mas que estão na razão de todos sermos, de vez em quando, insignificantes e gloriosos.

 

A imprensa pormenorizará os acontecimentos; a crítica fará os balanços. Daqui, a crónica termina garantindo que Springsteen nos salvou outra vez a vida, a nós e às boas dezenas que de perto vimos em volta (não há prova científica de que tenha salvo os 81 mil, embora o bom senso para isso aponte), ligando outra vez o sentido das coisas.

 

Aquele primeiro disco, comprado com os dinheiros dados pelo avô e as fracções subtraídas ao lanche, foi para nos trazer até aqui. Orgulhosamente roucos de ter passado a noite a gritar com um bando de outros furiosos reencontrados. Rebeldia passageira e redentora. Sonhos de erros que temíamos não ter cometido. Mesmo que só por aquele momento sejam verdade.

 

Tramps like us, baby we were born to run.

publicado por Alexandre Borges às 15:51
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Segunda-feira, 28 de Maio de 2012

a guΣrra

Não se pode falar de admiração; é mais uma perplexidade permanente e sem remédio. Quem são estas pessoas que percebem de Excel e que está por trás delas?

 

É a actualização do velho choque civilizacional entre os miúdos que iam para letras e os que iam para as ciências. Não havia meio-termo, então. O liceu tinha essa doutrina maniqueísta sobre a espécie: ou se sabia duma coisa ou se sabia doutra. Não havia uma terceira via nem hipótese de acumulação. Era preciso escolher de que lado se estava.

 

Essa guerra separou famílias e amigos. No pátio, à mesa do café, no bairro, pareciam todos iguais – jogavam os mesmos jogos, riam das mesmas piadas, disputavam as atenções dos mesmos rapazes e raparigas – mas, depois, esvaía-se a ilusão. Chegado o momento da escolha, ela era tomada sem clemência. Não se conheciam vizinhos nem primos; uns alistavam-se num exército e outros noutro e, a partir daí, agiam em conformidade. Da memória da pessoa de letras desaparecia subitamente toda e qualquer noção matemática elementar ou princípio das “Ciências da Natureza” aprendido aos dez anos: vertebrados e invertebrados, mundos animal, vegetal e mineral, fórmulas químicas mais complexas do que H2O e – oh! Requintes do demo! – contas de dividir. A de ciências, em compensação, conservava apenas uma vaga recordação de como se lia e escrevia. Lembrava-se de uma distinção misteriosa entre vogais e consoantes. Sabia da existência dum escritor chamado Eça de Queirós, mas ninguém lhe tirava da cabeça que “Os Maias” tinham sido criados como um instrumento de tortura para obrigar conspiradores políticos a confessar.

 

A invenção do Microsoft Office foi a certificação do cisma: os meninos de letras podiam brincar com o Word; os de ciências com o Excel. Com muita sorte e algum amor, talvez confessassem partilhar uma secreta atracção pelo Minesweeper.

 

Isso não passou. Já me têm pedido listas de qualquer coisa. Se as faço chegar num ficheiro Word, precipito o apocalipse. Um exceliano louco grita do outro lado que não sabe o que fazer com aquilo e que agora como é que vai ser, alguém ligue para a Gulbenkian a ver se eles lá têm especialistas que consigam converter aquela monstruosidade numa folha de cálculo.

 

Aparentemente, estas pessoas não conseguem ler uma palavra a menos que ela esteja dentro do quadrado duma tabela. “Os Lusíadas”, por exemplo, todos encaixadinhos num grande quadro de dupla entrada, revelar-se-iam, de repente, diante deles, em todo o esplendor. Sem isso, são um manifesto irracional debitado por um extraterrestre anarquista certamente movido por intenções pérfidas.

 

O contrário também é válido. Pessoalmente, suspeito de qualquer indivíduo que me envie um ficheiro Excel. Penso que está a pôr-me à prova. A ver se me denuncio como membro de uma sociedade secreta dirigida pelo Grande Excelómano do Universo. Desconfio que, introduzindo palavras secretas, cada quadradinho daqueles se abre e revela quem matou JFK, se Camarate foi atentado ou acidente, provas incontestáveis sobre que querem, afinal, as mulheres.

 

Mas não me dobram. Fecho a coisa e mando um email de resposta com um ficheiro de Word onde se lê, repetidamente, qualquer coisa adulta como “Figas-figas”.

 

Imagino-os a desesperar do outro lado do computador, tentando introduzir aqueles caracteres na calculadora científica, na ânsia de que lhes tirando a raiz quadrada, obtenham qualquer coisa inteligível.

 

É uma guerra fria cruel que se passa em segredo em andares e andares de escritórios. Mas cuidado com os agentes duplos: aqueles génios do mal que conseguem encaixar gráficos em ficheiros de texto. Têm a mania que são muito bons, os sobredotazinhos. Estou agora mesmo a aplicar-lhes o velho manguito. A ver se fazem melhor.

publicado por Alexandre Borges às 07:07
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Segunda-feira, 21 de Maio de 2012

o escritor está no ar

Acontece volta e meia. Pessoas que acabo de conhecer, ao descobrirem como ganho a vida, soltam – com a mesma expressão de tradução difícil, mas, apesar de tudo, calorosa – “Ah! Tem mesmo ar de escritor.”

 

Ar de escritor. Às vezes, é a minha própria mulher quem o diz, numa variante ligeira que distingue uma circunstância particular de uma hipotética essência duradoura: “estás mesmo com ar de escritor” ou (com determinada peça / conjugação de peças de roupa) “ficas mesmo com ar de escritor.”

 

A persistência no termo “mesmo” denuncia um solilóquio interior que a pessoa manteve, anteriormente, com ela mesma, mas que não chegou a verbalizar. O que torna tudo um pouco mais preocupante.

 

Notem: já percebi, pela dita expressão de tradução difícil, que ter “ar de escritor” não é uma coisa má. As pessoas não o dizem enojadas, não se afastam para uma distância de segurança, não chamam a polícia, não vão antes conversar com a pessoa que tem ar de operador de raio-x, não tapam os olhos aos filhos. Noto-lhes até, arriscaria, uma certa aspiração na voz que parece – parece – roçar uma pequena admiração. Porque as pessoas, por muito que detestem incontáveis escritores em particular, costumam simpatizar com escritores em geral.

 

O problema é tudo quanto ter “ar de escritor” parece excluir. Ter “ar de escritor” implica, decerto, não ter ar de Adónis, ar de atleta olímpico, ar de príncipe dinamarquês, ar de herói de guerra, ar de quem figure na lista dos 500 mais ricos da Fortune.

 

“Ar de escritor” é assim uma coisa que sugere, talvez, uma pessoa inteligente e interessante, mas potencialmente deprimida, uma lástima no desporto, alguém que, quando arrisca um passo de dança na pista da discoteca, coloca a Protecção Civil em alerta amarelo.

 

“Ar de escritor”, dá-me ideia, e a julgar por mim, implica uma certa palidez, uma considerável miopia, uma certa relutância em gastar 15 euros numa recarga de lâminas de barbear e uma preferência por camisolas de gola alta de que só se abdica perante intimação do tribunal. Não quer necessariamente dizer “feio” ou “tipo perfeitamente incapaz de sacar uma miúda com menos de cinco dioptrias”, mas, convenhamos, também não significa exactamente “deus sexual”.

 

Por vezes, penso em responder a estas pessoas que, do Lobo Antunes ao Paul Auster, vai uma considerável diferença de “ar”. Mas, depois, calo-me e prefiro escrever sobre a coisa.

 

Enquanto penso que ar terá o leitor. 

publicado por Alexandre Borges às 21:12
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Segunda-feira, 14 de Maio de 2012

a glória é um lugar de estacionamento

É uma coisa silenciosa, que é como dói mais. Um gesto discreto, porque pressupõe a evidência da situação. A constatação de uma superioridade que conta, de antemão, com o reconhecimento tácito por parte do ser inferior. Entram no elevador, vêem o piso zero seleccionado, introduzem a chave que dá acesso aos pisos do parque e depois fazem-no. Rodam ligeiramente o pescoço e arqueiam a sobrancelha com precisão geométrica, dizendo: “Tu sabes que eu sou melhor, não sabes?”. E seguem o resto da viagem de queixo erguido e olhar fixo num horizonte elevado, passando em voo rasante sobre a nossa cabeça, subitamente enterrada entre os ombros.

 

Donde veio isto, não tenho ideia. Mas ter um lugar de estacionamento, tornou-se, parece, a palma olímpica. Imagino pais perguntando às filhas casadoiras: “Quero lá saber se ele é bom rapaz! Tem lugar no parque da empresa ou não tem?”. E, a partir daí, tudo é possível: “Sim. Ele tem mais 65 anos do que eu, esteve preso nos últimos 40, está todo cheio de doenças, abandonou as últimas três mulheres e os 15 filhos à fome e diz que só me quer para cozinheira e escrava sexual, mas tem lugar no parque da empresa.” Pais: “Filho!!!!!”

 

Sim. Segundo a ética contemporânea – aquela onde toda a gente tem um blackberry, um cargo em inglês na assinatura do email (um estafeta é, por exemplo, um Senior Delievery Specialist) e toma brunches em vez de – q’horror – pequeno-almoço, é desprestigiante respirar o mesmo ar que o resto da espécie. Ter de cruzar a recepção do prédio, passar pela mesma porta por onde – asco – toda a gente passa e, imagine-se a pelintrice, caminhar pelo próprio pé até à viatura ou – artimanhas do demo – transporte público, é atestado de falhado (na assinatura do email, ler-se-ia: “Senior Losing Executive”).

 

As lutas fratricidas dentro das empresas por quem tem direito a lugar de estacionamento e porquê. A magnanimidade com quem alguém cede solenemente o seu lugar no parque quando vai de férias. O choque desalmado perante a descoberta de que alguém estacionou, impiedosamente, o seu carro plebeu sobre o sagrado lugar de outrem.

 

Antes, queríamos um lugar no céu. Agora, um lugar no parque. Chamem-me retrógrado, mas preferia a primeira. Se me arqueassem a sobrancelha, é porque, ao menos, devia ter feito alguma coisa agradável.

publicado por Alexandre Borges às 13:20
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Segunda-feira, 30 de Abril de 2012

modernices

Há dias, num café: um rapaz, duas raparigas, o jornal desportivo na mão do rapaz, elas queixando-se de que aquilo não tinha nada para ler, ele a chegar à página onde se falava da eliminação do Barcelona da Champions e o consenso por fim encontrado: eram todos do Barcelona. Ele, que era do Benfica, mas que explicou que: “o Barcelona é a minha segunda equipa”; uma delas, que era do Sporting, mas que disse que “também a minha”; a outra, que nem gostava de futebol, mas que achou por bem completar o momento de harmonia com um lapidar “ahã”.

 

Foi ali, com aquelas três alminhas, mas poderiam ter sido outras, noutra parte qualquer. Nos últimos anos, o Barça teve muita saída. Como os iPhones ou a nespresso. Deve ter acabado quarta-feira.

 

A relação de uma pessoa com um clube desportivo não é um estado de alma. Eu não estou do Alverca hoje e amanhã do Bombarralense. Também não é uma coisa que se tenha porque, se fosse, poderia perder-se. O uso da Língua é muito claro neste ponto: nós dizemos que “somos” dum clube. Eu sou do Bombarralense. Eu sou do Comércio e Indústria. Eu sou do Benfica. Ser. Identidade. Ser de. Pertença. Não se é uma coisa e outra diferente ao mesmo tempo. Chama-se Princípio da Não Contradição, mas não é preciso ter estudado Lógica para o saber; qualquer criança o intui. Ela é o Pedro; razão pela qual não é o Jacinto nem o Manel.

 

Ser dum clube, como sabem todos aqueles que verdadeiramente gostam de bola, não é uma decisão que se tenha tomado. Nada na essência de cada um de nós o foi. Ninguém decidiu que seria rabugento, sonhador, medroso, contemplativo, chato, interessante, et cetera. Um tipo é o que é; parte património genético, parte milagre, parte acaso. É alto, teimoso e sportinguista. Não decide tornar-se alto, teimoso e sportinguista.

 

Pode gostar-se do Barcelona, da forma como joga, da História do clube, do espírito, dos jogadores que tem. Mas ser dum clube estrangeiro como se é daquele de quem se é desde pequenino? Ao mesmo tempo? Em time sharing? Ser do rico, famoso, que se vê na televisão, como se é da malta do bairro?

 

A bissexualidade futebolística, leitor, é uma coisa que não me entra.

 

Chamem-me antiquado. Em pequenino, jurei ao Diamantino que era para toda a vida. 

publicado por Alexandre Borges às 02:21
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Segunda-feira, 23 de Abril de 2012

deus não existe, foi o que as cartas disseram

Dizia há dias um estudo que há cada vez menos católicos. Não duvido. Duvido é que haja cada vez mais ateus. A malta gosta de se armar em durona. Qual adolescente em furiosa afirmação pessoal, gaba-se da sua ciência, do seu banho de mundo, da sua lucidez, da sua tecnologia, enquanto troça dos tontinhos que ainda vão à missa e ouvem a Renascença. Porém, debaixo da ilusão do cepticismo, da maturidade, da razão, nunca foi tão absurdamente crédula como agora (sublinhe-se a diferença entre crédula e crente).

 

O vulgo moderno revoltou-se contra a religião dos papás e abraçou o tutti-frutti da espiritualidade. Ele, basicamente, acredita em tudo. Tudo menos – Deus nos livre – o que seja católico.

 

Ele acha o Budismo uma escola de vida, o yoga uma prática extraordinária, os deuses hindus um mistério fascinante. Apercebeu-se de que há um karma na sua vida. Tem agora a casa cheia de velas com aroma a cedro para se libertar dele. Quando tem tempo, faz meditação (sim, porque, para ele, “rezar” é a coisa mais careta do mundo, mas “meditar” já é toda uma outra conversa). Anda a tentar equilibrar os shakras. Frequenta gurus, terapeutas e massagistas-que-sentem-coisas. Já foi a uma consulta de numerologia e a muitas de astros. Lançaram-lhe as cartas, leram-lhe a sina, fizeram-lhe o eneagrama; para a semana, tem marcada uma constelação familiar.

 

Desde que foi à Índia, despertou nele uma espiritualidade inquietante. Anda a tentar descobrir o que foi na outra vida. Tem muito respeito pelos islâmicos. Acha que não devíamos ir lá meter-nos com os princípios deles, que não se deve brincar com o facto de serem poligâmicos e esconderem as mulheres e lapidarem as adúlteras. A Igreja Católica é que é uma vergonha, que não autoriza o preservativo.

 

Tem em casa uns budas e pedras para diferentes ocasiões (uma que afasta o mau olhado, outra que atrai boas energias, outra que o faz estar bem consigo mesmo). Reorganizou todo o apartamento de acordo com o que lhe explicou uma amiga acerca do feng-shui. Vai lendo uns livros tipo “O Segredo” e tenta segui-los à risca. Alimenta-se de acordo com um plano rigorosamente adequado às necessidades energéticas do seu corpo. Espalhou incenso pelo andar. Tatuou um Vishnu na omoplata direita e um Shiva na esquerda.

 

Reserva bilhetes na primeira fila para ouvir o Dalai Lama na Gulbenkian, mas acha uma vergonha que se feche o Terreiro do Paço para o Papa. Não compreende que faz aquela gente toda em Fátima enquanto compra um bilhete para o Tibete.

 

No Brasil, disseram-lhe que tem um anjo e, desde então, que lhe parece senti-lo. Bebe um chá às terças-feiras que dizem que purifica e tem momentos em que, quase, quase consegue ver a aura das pessoas.

 

Acredita no PT e no psiquiatra, no poder curativo do pensamento positivo e a verdade é que, da última vez que lhe lançaram os búzios, acertaram em quase tudo.

 

Tem pena da mãe, que ainda acha que vai para o céu. E do pai, que tem medo de ir para o inferno. Estava capaz de acender uma vela de cedro por eles ou de meditar um pouco em volta da ingenuidade dos velhos. Mas são um caso perdido. Comem tanta carne vermelha.

publicado por Alexandre Borges às 01:23
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Segunda-feira, 19 de Março de 2012

velhos papéis (região autónoma da memória)

Esta crónica estava para começar assim: “Este fim-de-semana, uma raridade: tempo.” Tenho o projecto pessoal de elimar todas as palavras desnecessárias, mas ocorreu-me, depois, que estaria a pisar terreno de Paulo Bento, aclamado autor das frases sem verbo.

 

Em todo o caso, está passada a ideia: este fim-de-semana, ao contrário do habitual, aconteceu algum tempo livre. E assim usei-o para cumprir uma daquelas velhas tarefas sempre adiadas: arrumar papéis. Papéis que se acumulavam aqui perto da secretária à espera de arquivamento condigno em caixa própria no sótão.

 

Papéis pessoais à parte, boa parte da tarefa consistia em tratar jornais e revistas, na forma completa ou em artigos arrancados aos agrafos e proceder a uma selecção adequada ao exíguo espaço livre da caixa em questão.

 

Passei as primeiras páginas dos jornais de 12 de Setembro de 2001, cheias de fumo; o 11 de Março de Madrid; o 7 de Julho de Londres; a captura de Saddam Hussein; a morte de Saddam Hussein; muitas mortes, na verdade: Antonioni, Bergman, Kadafi, Steve Jobs. Os dossiers com a vida completa de João Paulo II; as campanhas futebolísticas do Euro 2004 e do Mundial 2006. Depois, artigos, de uma forma ou de outra, sobre a escrita: Robert Mckee, Jon Favreau, 16 histórias de 10 palavras encomendadas a 15 autores. Suplementos defuntos: Ícon e Preguiça do igualmente defunto Indie (também por lá andava a última edição, bem como a última d’ A Capital, e a última Grande Reportagem, e uma Grande Reportagem com reportagem sobre a FLA na capa, obra do Nuno Costa Santos), e o último “Olho Vivo” do Eduardo Cintra Torres, e o , anexo tão recente do DN que pareceu de repente tão longínquo, a Atlântico, o (sim, do ponto de vista cronológico, esta enumeração é o caos), revistas com garotas na capa, revistas de cinema (algumas com garotas na capa). Muitas notícias de ciência: o verdadeiro rosto de Cristo; os milhões de europeus que descendem todos, afinal, de apenas dez pais; a sequenciação do genoma humano. Críticas a livros de amigos, artigos sobre lançamentos de livros de amigos (incluindo foto do Francisco José Viegas sem barba – um artigo de colecção), incontáveis jornais desportivos de muitos domingos consecutivos, subitamente interrompidos quando o Benfica perdia qualquer aspiração ao respectivo campeonato. Muitos treinadores, muitas promessas, chegadas de vedetas e despedidas de outras. Diferentes edições acerca do fim do velho Estádio da Luz e da inauguração do novo. Algumas revistas estrangeiras. Muitos suplementos de balanço com o melhor e o pior de cada ano. Uns quantos DNA, incluindo um onde José Eduardo Moniz, na capa, pré-Big-Brother, diz que também ele quer sorrir.

 

Estão ali uns bons dez anos. E, no fim, a pergunta é: para quê? Para quê guardar ainda papel? Que informação daquelas não estará hoje alojada nos sótãos da web, disponível à distância de alguns segundos ou, na pior das hipóteses, muita paciência?

 

A razão, concluí, enquanto tentava comprimir papel que encheria uma pequena sala da Torre do Tombo numa caixa onde não caberia um computador dos antigos, nada tem a ver com a memória. A memória é atoleimada e visceral, teimosa e sanguínea. Não vai em tecnologias futuristas como não vai em nostalgias organizadas. Administra o seu próprio território, com as suas leis e respectivas penas. Um dia – ela sabe-o, contra todas as evidências – viverá um serão grandioso entre pó e aranhas, chás ou aguardentes, onde abrirá a caixa e revelará a uma qualquer prole do futuro os heróis, as mulheres, os amigos, os crimes, as obras, as proezas e os extraordinários fracassos do seu tempo.

 

Mesmo que isto nunca aconteça, é a sua missão. Contar à sua maneira a história do tempo que viveu. Para o caso de nunca aparecer quem lho saiba explicar.

publicado por Alexandre Borges às 01:02
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Segunda-feira, 12 de Março de 2012

turbilhões de indulgência

Casei com a Nexpresso já lá vão uns anos. Não façam perguntas íntimas. Posso apenas dizer que, de início, a ignorei. Era demasiado óbvia. Desejada por todos, popular, fashion – coisa, enfim, doutro campeonato. Depois, sucumbi. Ela foi lá para casa e os primeiros tempos foram de arrebatamento: não era só o sabor, a elegância, a perfeição; era sobretudo o dar muito menos trabalho do que todas as outras (põe pastilha, tira pastilha, passa o depósito por água e já está). Ao fim dum ano ou dois, veio a rotina. Sabia tudo ao mesmo. Comecei a cansar-me do aroma. No fundo, elas (as cápsulas) eram todas iguais. Por fim, como um homenzinho, pus a mão na consciência. Vi que também eu não tinha sempre agido bem (umas bicas por fora, aqui e ali… Enfim, um cafeinómano não é de pau). Comprei o pacote de descalcificação, li as instruções, conduzi o processo. Hoje, temos uma relação adulta. Passado o deslumbre, ficou a confiança. Estamos lá um para o outro.

 

Dirá o leitor: “mas é só café”. Não, meu amigo. Não é só café. Quem quer que tenha vivido o privilégio de receber em casa a comunicação epistolar da Nexpresso sabe do que falo. É literatura. E assume duas formas: os catálogos (epopeias de aventura) e as cartas (poesia lírica). No primeiro caso, estes júlios vernes da cafetaria deixam-nos de respiração suspensa com empolgantes relatos que nos apresentam ao trágico passado daquelas pobres cápsulas. Cada um daqueles inocentes cafezinhos foi plantado por eunucos nos melhores solos da Colômbia; seleccionado por druidas celtas e monges tibetanos; colhido por virgens no solstício de Verão, salvo de ursos em fúria e tribos índias em polvorosa, transportado através do mundo por anões ao pé coxinho e empacotado enquanto o coro do São Carlos entoava árias de Puccini. Tudo, asseguram-nos, para que desfrutemos da plenitude do seu sabor.

 

No segundo caso, a coberto da assinatura dum pretenso “Club Manager”, poetas de génio escrevem-nos comoventes epístolas que preparam o terreno para a experiência mística que nos aguarda.

 

Reza assim a última carta a propósito do Grand Cru Dulsão do Brasil: “O seu corpo mais equilibrado e a suavidade infinita da sua essência (“suavidade infinita da sua essência”, por trinta e poucos cêntimos a cápsula, hã?) revelar-se-ão (repare no tom profético do tempo verbal, remetendo-nos para uma dimensão astral) nas suas experiências de degustação” (fino equilíbrio entre ciência e erotismo). Já o Grand Cru Livanto, garantem, é “mais subtil do que aparenta”, o sonso – são os piores. Ambos, a par do Volluto, “suaves e encorpados com personalidades surpreendentes”. Universitárias meigas e massagistas peludas dos classificados, ponham-me os olhos nisto.

 

Por fim, remata o estilista escondido atrás do óbvio pseudínimo “Teresa T. Magalhães”, o êxtase lírico: “Sublime as suas experiências de degustação com os nossos capuccinos” (ler aqui “sublime” como eufemismo de “enfarte”, consequência lógica de beber uns capuccinos depois de três cafés de pancada). “A cremosidade do leite equilibra os aromas e suaviza a sua plenitude, transportando-o(a)” (sublinhe-se a lânguida ambiguidade sexual) “para” – atenção, caro leitor – “um turbilhão de indulgência”.

 

F*da-se. Um turbilhão de indulgência.

 

Um Delta faz isto, por acaso? Um Torrié?

 

Não brinquem comigo.

 

Quando quero um café, vou à rua. Nexpresso é Buda. E Samantha Fox. E Pessoa. Tudo junto. E não necessariamente por esta ordem.

publicado por Alexandre Borges às 02:06
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