Consegue levar-se uma vida normal, mas, de vez em quando, há uma recaída. Isto é, a pessoa vive razoavelmente o dia de hoje, mas, de repente, dá por si e já está a pensar nela. Na posteridade. Já foi pior. Já foi melhor. Está cá para a vida.
Como é que acontecem os ataques, em concreto? Varia. Ultimamente, há um que é recorrente: dou comigo a olhar para os cantos da casa e a pensar se alguns deles será decente o suficiente para conceder entrevistas. Vejam qualquer depoimento em qualquer documentário. Aliás, para o efeito, basta espreitar o “60 Minutes”: toda a vedeta tem uma estante enfermada de livros. Sobrepostos, justapostos, razoavelmente organizados e desorganizados para dar aquele ar de uso constante. E uma secretária com os livros que se anda a ler e as papeladas e alguns bibelots exóticos de partes remotas do mundo. São provas de vida. Mas toda a gente sabe que, se o plano abrisse, via-se o fim do cenário. Sim, porque aquilo não existe. É um palanque montado, como nas flashinterviews no fim dos jogos. Ou os pódios da Fórnula 1.
Sim. Suspeito que, atrás da estante onde o António Barreto dá entrevistas, há uma marquise. E uma mega tela onde é projectada, sem som, a Sport TV 3, atrás da do Eduardo Lourenço.
Mas não tenho nada disso. E a angústia consome-me. Que é que eu faço quando, um dia destes, a qualquer momento, a imprensa começar a ligar para a espiral de entrevistas? As minhas estantes mal enchem o plano. O louceiro é demasiado baixo. Os gatos estariam sempre a passar diante do meu ar grave, a meio de uma citação de Rawls.
Depois, há o problema do computador. Como é que é quando um tipo morrer? Quando vierem caçar à viúva o espólio de inéditos? Levam-me a máquina e descobrem, na pasta ao lado dos poemas dedicados à Maria das Dores, no 7º ano, os vídeos da Jenna Jameson? Vão em busca do romance inédito e esbarram nas fotos do artista em pijama de estrunfes? Que deve um homem fazer? Apagar já tudo? E se eles nunca pedem os inéditos? E se um gajo demora a morrer? Tem de suportar o absurdo da vida sem estrunfes nem Jenna Jameson? Como?
Depois, há a questão dos amigos e conhecidos. Isto é muito importante. Depois de um tipo bater a bota, são eles que vão falar dele. Vão ser convidados para programas e conferências e botar faladura e nós não estaremos lá para fazer a defesa. Que se deve fazer, hoje, enquanto é tempo? Tratá-los bem, claro. Estudar umas frases boas para lançar para a mesa que eles possam citar depois. Ter um ou outro pequeno gesto heróico que eles possam contar, mais tarde, à Maria João Avillez. Agora, é bom que os cabrões tenham boa memória. Mas isso já não está nas nossas mãos…
Depois, isto passa. Vejo os meus gatos a brincar com joaninhas, trocam-me o nome com o da Alexandra Borges e telefonam-me da imprensa a pedir o número de telefone doutro gajo e fico porreiro.
Porreiro, sim. Que é para, um dia, não irem para os documentários dizer que eu era um arrogante insuportável.
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