Quando eu era miúdo havia uma regra lá em casa: ninguém podia pegar no jornal antes do meu pai acabar de o ler. O jornal podia estar ali esquecido e solitário num canto, que até o velhote se sentar no cadeirão e desfiar cada uma das filas de letrinhas, aquele maço de folhas era só dele.
Quebrei a regra algumas vezes. Mas, porque não queria chateá-lo, comecei a deixar o jornal na sua quietude, ainda que algumas vezes sofresse pelo seu abandono. Apetecia-me acarinhá-lo, dizer a cada notícia: não estás só, eu estou aqui e vou ler-te. Mas não podia. Arranjei outro método de leitura: o meu pai sentava-se no cadeirão, abria o jornal, dobrava-o ao meio na página que queria e eu lia a página oposta. À medida que ele ia lendo, eu ia lendo na ordem inversa - uma espécie de generation gap literário. Como isto o irritava ele passou a ler o jornal sem o dobrar, de modo que eu só lia as manchetes da primeira página e a crónica da última. Acabei por me tornar um popularucho com ambições intelectuais.
Hoje também sou um homem de rituais. Todos os dias vou à mesma pastelaria de manhã e todos os dias tudo se processa da mesma maneira. Compro o jornal, sento-me na mesma mesa (ou desejo uma doença grave a quem se senta na minha), peço a coisa X e Y para comer e Z para beber. X, Y e Z só são alterados de muito em muitos anos. Vou mirando as páginas entre dentadas, café, cigarro e a passividade agressiva do relógio que me vai dizendo que já devia estar a trabalhar.
Mas nunca estou só. Por trás de mim está o senhor M. O senhor M, empregado de mesa, não é como o senhor F, igualmente empregado de mesa. O senhor F sabe tudo sobre o mundo e até fala francês, o senhor M é surdo e só sabe de bola. Sabe graças a mim, que todos os dias de manhã compro A BOLA. Não quero saber de notícias sérias, quero um relaxante muscular, uma côdea de sossego inane: as tricas do Olhanense, a rótula do Edinho, as ambições do Manó, a reportagem sobre a senhora que lava as toalhas no Sertanense. E o senhor M também quer.
Como ele é surdo, cada vez que comenta uma notícia grita ao meu ouvido. Como ele é surdo não vale a pena dizer-lhe para não gritar. Também não vale a pena dizer-lhe que não gosto que esteja por trás de mim a ler. Podia perguntar a um amigo psicanalista o que me incomoda tanto em ter um velhote por trás de mim a ler o meu jornal mas tenho medo da resposta.
Hoje ocorreu-me que mesmo tendo estado contra a regra do meu pai durante anos, agora ando, contrafeito, a imitá-lo. Está dentro de mim: não quero que estejam nas minhas costas a ler o que é meu. Deu-se-me uma certa tristeza quando me apercebi disto. Nem li bem o jornal. Dei-o ao senhor M, que se pôs a lê-lo enquanto comentava aos gritos a acusação de corrupção que o Moitense de Baixo fez ao Moitense de Cima.
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